Van Gogh

Van Gogh

Pesquisar este blog

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

CLÍNICA PSICANALÍTICA E MODERNIDADE



CLÍNICA PSICANALÍTICA E MODERNIDADE


Jorge de Campos Valadares*

RESUMO

               O trabalho lança a pergunta sobre o que poderia ser considerado patologia de comportamento hoje, sobretudo o que poderia ser considerado perversão.  Lugar nenhum que “com o ar de nos guiar vai nos perder a meio caminho” (Cojean, 2002: s/p) a arte seria uma nova utopia, um saber-sabor (Barthes, s/d) a ser sempre redesenhado.  A arte como um lugar de encontro – uma vez que o artista se reconhece a partir da ad-miração de sua obra pelo outro – transforma valores e abre, assim, espaços na cultura.  Estes espaços estavam, antes, fechados nos pactos denegativos (Kaës, 2002) e nos romances familiares (Freud, 1909/1974).  Fica a questão de pensarmos as condições de intermediação, através da arte, para esses trânsitos entre sujeito e cultura.

               Palavras-chave: psicanálise, arte e clínica, clínica e sociedade, modernidade


ABSTRACT
PSYCHOANALYTIC CLINIC AND MODERNITY
               This article reflects upon wha could be considered pathological behavior today and, above all, what could be considered perversion.  A nowhere place which “with the air of guiding us will miss us half way” (Cojean, 2002, w/p), art would be the new utopia, a flavoring knowledge (Barthes, w/d), being always redrawn.  Art as a place of the encounter – where the artist recognizes himself from the ad-miration of his work – modifies values and opens cultural spaces.  These spaces were closed before in the negation pacts (Kaës, 2002) and in the family romances (Freud, 1909/1974).  Therefore, a question remains for us: to think about the conditions of intermediation, through art, of those transits between subject and culture.

               Keywords: psychoanalysis, art and clinic, clinic and society, modernity

*Membro do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro.



Todos andamos em dúvida quanto aos limites do que poderia ser considerado como comportamento patológico nos dias de hoje.  Vários colegas têm se referido ao desaparecimento dos ideais, ao afrouxamento do Superego, à derrocada das ideologias,ao desaparecimento de líderes autênticos como fatores que nos colocam sem um rumo e sem um prumo.  As transferências se dão agora na horizontalidade, entre os irmãos, e a autoridade se perdeu no tempo, como coisa do passado.

               Tenho me referido à arte como o lugar privilegiado para a busca de utopias, um avez que a ciência continua sua pesquisa sem fim, perseguindo um conforto que, paradoxalmente, lança o homem na busca de instrumentos, transformando-o, no fim das contas, em um instrumento de consumir instrumentos.  Refiro-me à arte e, em especial, à obra da artista gaúcha Elida Tessler, às suas “Palavras-chave”, em que a memória funciona como pequenos “calhaus lançados”, que com o “ar de nos guiar vão nos perder a meio caminho”, tomando emprestadas as palavras de Annick Cojean (2002: s/p).  Está aí a arte a nos devolver nossas pistas.  Procurar a saída, nunca ser uma trilha já conhecida.

               Lutamos todos, aqueles que pertencem a uma geração que atravessou Beatles e beatnicks, ditaduras e maios, pela queda de ideais encarnados, que tenderiam sempre a se transformarem em tiranias.  Deixar de lado aquilo que, em qualquer militância, não titubeia em substituir o pensamento pelo sistema motor.

               Tentávamos, naquela época, uma visão de todo, sempre cambiante, onde o “um “ do ato político fosse a manifestação constante da queda do que quisesse permanecer sem se atualizar e, portanto, não aparecesse como um momento vivo.  Mas veio o fim da autoridade e não caiu o autoritarismo.  E percebemos, no meio da estrada, que algo de carne e osso nos falta em meio à virtualização que domina o mundo.

               O corpo, lugar de vida e vivência, se transformou em imagem a ser redesenhada à exaustão, na ciência e na filosofia, além de também na arte, onde a estética pode ir da estereotipia das imagens, incluindo aí a imagem do corpo enigma, à quebra do especular, para empregar a terminologia de Henri-Pierre Jeudy (citado por Villaça, 2003).  Mas a partir de Argan (1999) sabemos que a perenidade da arte clássica não está em sua intocabilidade, mas no germe de revolução que traz já dentro do perene, como também a arte moderna, para merecer o nome de arte, deve trazer em si a marca perene da história e do que é clássico.  Assim, vemos que pouca gente fora do espaço da arte está disposta ao risco.  Esse risco corresponde a trazer no traço, no risco – aquilo a traçar o próprio nome do artista – algo de singular e inusitado e da ordem do espanto, percorrido por ele, no que merece ser chamado de vida.

               Hoje o Princípio do Prazer colou-se ao Princípio da Realidade, como nos diz Thaïs Sá Pereira (comunicação pessoal).  Ora, com Hölderlin (citado por Heidegger, 1950/1990:32), sabemos que “somente onde cresce o perigo floresce a salvação”.  Mas todo gesto está sendo aprisionado dentro de uma “programática”, “deve ser previsto na realidade”, no “reality show”, e nada mais é acontecimento.  Nada deve surpreender, assustar, espantar: a vida que deve ser sempre surpresa transforma-se em um projeto vendido em cursos, viagens de férias, televisão e internáutica, adiamentos de sonhos para o cumprimento de compromissos, com “prestações” pragmáticas e financeiras.

               Quanto à aprendizagem, na história do sujeito, a própria transmissão. Sempre confundida pela “inteligência” do estado com o processo educativo, se dá na crise entre gerações, em acontecimentos, nos quais as formações (bildungen), as imagens se oferecem como o gracioso do conflito próprio da constituição do ideal. Olga Ruiz Correa (2002) não nos deixa confundir acontecimentos com eventos e situa os acontecimentos primordiais: nascimentos, mortes, crises vitais, divórcios etc.  Estes, quando fazem parte do mundo “críptico”, isto é, sendo perdas não elaboradas, sem o processo do luto, podem invadir o próprio corpo paralisando-o, adoecendo-o ou, ainda, abrindo feridas no sentimento de si mesmo, no amor próprio,no narcisismo, tudo sendo “transmitido como restos negativos, sem modificação e de forma repetitiva” (Correa, 2002:73).  Nesse sentido toda a sociedade firmou um “pacto denegativo”, trazendo aqui o termo de Kaës (2002), do que pode vir a ser “falta” e “falha”.

               É preciso, entretanto, supor que toda a sociedade e cada sujeito vivem do contraponto desses restos encriptados e das identificações, dos ideais sempre cambiantes.  É o ato de viver que vai pôr fim a uma crise de valores ou, no dizer de Castoriadis, crise de significações imaginárias sociais, dando início a outra, e indicando as finalidades de ação daquilo que “é aprovado fazer ou não socialmente e se estende a um nível importante da ética” (citado por Correa, 2002:70).

               Ressalto assim o magnífico texto de Georges Benko (1994), “Geografia de lugar nenhum”, no qual se refere a motéis, aeroportos, autoestradas etc., que penso serem o lugar de surgimento de sujeitos, pelo que suportam de inusitado.  Aí o encriptado, o que transforma o corpo em túmulo, se lança para além do discurso e possibilita a expressão daquilo que pode ser “somente depois” compreendido pelo sujeito e transformado pela cultura em práticas aceitas ou marginais.

               O vazio preencheu o espaço do sonho e tudo se transforma em compulsão e melancolia: há uma saudade de algo que nem se sabe se chegamos a ter e uma mágoa, um rancor, um ressentimento a se apresentarem como impossíveis de serem superados.

               A pessoa que se atira em algo como a angústia ou depressão parece corajosa demais para a época de festa, luzes e brilhos televisivos.  Aquilo que Masud Kahn (1974) chamou de aparelhos sexuais do Eu-Corpo e que são de fato movimentos iniciais de “acesso” ao outro parece ter ficado como a única forma de expressão, compreensão e transformação do mundo.

               A quem poderíamos chamar de “doentes”, em um mundo onde todos estamos doloridos, adoecidos, adormecidos? Quem não está buscando uma religião como recurso para enriquecimento ou embrutecimento da subjetividade, como lugar de sonho ou pesadelo e contra o “mesmo” em que se transformou o mundo, mesmo que ao preço de deixar toda uma vida para depois da morte, contando que se possa, ainda, sonhar um pouco? Ou, então, quem não está praticando técnicas corporais à exaustão, orientais ou com alguma criatividade aí agregada? Ou, ainda, quem não recorre a uma medicina alienada e alienante, sempre a esquecer que o corpo padece de males do meio, da ausência de recursos para nós ou para aqueles que nos ajudam, muitas vezes morando em tugúrios, sem água, encaminhamento de restos? Somente aqueles que estão a sair em carros de vidro “fumê”, ou mesmo blindados, da casa de praia para a cada de montanha, passando, no local de trabalho, um tempo de insistências exaustivas, onde transformam em reserva de mercado toda a produção humana que encontram pela frente: aí aparece tudo, até mesmo a “melhor” teoria, como o que há de mais “eficaz, efetivo e eficiente”, isto é, tudo se transforma em um produto qualquer a ser vendido.  É necessário, aqui, lembrarmo-nos de que o sentido grego de produção era o poiesis.  Por isso tenho dito que onde há um certo instrumento, um dispositivo, deve haver também uma certa disposição.  Toda técnica, uma vez empregada, traz a marca de uma utilidade, quando não de um utilitarismo.   

               Há bastante tempo o psicanalista Roberto Quilelli, que desafortunadamente não está mais entre nós, em conferência no Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, dizia que o diagnóstico é o próprio inoportuno; se queremos que alguém floresça diante de nós, agora, mais ainda, preparemo-nos para o aparecimento de nós mesmos no impensado, no estranho, naquilo que o outro, dentro de nós, tem de mais tolerável, mas também de surpreendente e alvissareiro em matéria de muito nova alegrias e realidades.

               Devemos, pois, na clínica, podermos nos surpreender com todo o potencial do “impensável”, a força no nosso inconsciente, bem à vontade, sem medos ou dispostos a enfrentá-los: condição essencial para que possamos ser clínicos e não cínicos, uma vez que o mundo está aceitando mais humanamente o inaudito do que muitos de nós em consultório.  Em outras palavras, devemos reconhecer a belíssima expressão de Brentano “Deus está no detalhe”, certamente escutada fundamente por seus mais brilhantes alunos: Freud – o conceito de pulsão não viria daí? – e Heidegger (Safransky, 2000).
              
               Resta-me uma palavra sobre o termo “intermediário”, de René Kaës (2002), ou sobre a “tecelagem vincular”, de Olga Ruiz Correa (2002), essenciais na consideração da miríade de saberes sobre o humano, formando as “ontologias regionais”, no sentido heideggeriano (Safransky, 2000), sempre a aparecer.  A pertença simultânea a vários grupos vem a tentar “re-solver” em ato, dissolver transferências na ação do teatro da vida, constituindo-se em um espaço de subjetividade, de criação, portanto, “reservatório ou depósito de fantasmas e fantasias” (Correa, 2002: 72), favorecendo a transmissão com o amaciamento de crises, metabolização de vivências etc.

               Por outro lado, somente podemos compreender e transformar os “envelopes institucionais” e seu trabalho de conter (conteneur) e os saberes sobre o labor vincular que trazem liga às “ontologias regionais” se tratarmos os “pactos denegatórios” como movimentos em direção às alianças mais humanas ou cumplicidades nascentes.  E parece impossível pensar vínculo sem cumplicidade.  Pensando assim, a poiesis de um novo mundo será talhada à luz da lua... e não mais no brilho de um sol, que pode ser um “sol negro”, a nos levar para a depressão.  No dizer de René Depardieu, torneiro-flandeiro e pai do grande ator Gérard Depardieu: “a luz da lua torna o metal muito macio” (René Depardieu, citado por Cojean, 2002:s/p).  Isso exige um dispositivo técnico e uma disposição técnica.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

·        ARGAN, G. C. (1999). Clássico anticlássico: o renascimento de Brunelleschi a Bruegel.  São Paulo: Companhia das Letras.
·        BARTHES, R. (s/d). A aula. São Paulo: Cultrix.
·        BENKO, G. (1994). Geografia de lugar nenhum. Breve exame do mundo pós-moderno. In SANTOS, M; SOUZA, M.A.; SILVEIRA, M. L. Território, globalização e fragmentação (p. 247-251). São Paulo: Hucitec/Ampur.
·        BOONS, M-C. (1979). Le un et le tout en politique. Revue Confrontation, 2, s/p.
·        COJEAN, A. (2002). Chers parents. Gérard Depardieu. Le Monde, 28/8/2002. Paris, s/p.
·        CORREA, O. R. (2002). A instituição família na tecelagem vincular. In Vínculos e instituições. Uma escuta psicanalística (p. 67-84). São Paulo: Escuta.
·        FREUD, S. (1909/1974). Romances familiares. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. IX (p. 243-247). Rio de Janeiro: Imago.
·        __________________ Sobre o narcisismo. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XIV (p. 89-119). Rio de Janeiro: Imago.
·        HEIDEGGER, M. (1950-1990). Die Frage nach der Technik. In Vorträge und Aufsätze. (p. 9-41). Frankfurt: Pfulligen Günter Neske Verlag.
·        KAËS, R. (2002). O interesse da psicanálise para considerar a realidade psíquica da instituição (p. 9-31). In CORREA, Olga. R. Vínculos e instituições. Uma escuta psicanalítica. São Paulo: Escuta.
·        KHAN, M.M. (1974). La rancune de l’hystérique. In Aux limites de l’analysable. Nouvelle Revue de Psychanalyse, V. 10, p.151-158.
·        SAFRANSKY, R. (2000). Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. São Paulo: Geração Editorial.
·        VALADARES, J. C. (2002). A arte como é um espaço de invenções, de vida, a procurar pelo avesso do sintoma.  In Utopia e a função social da arte. Correio da APPOA, outubro de 2002 (p. 18-23).
·        VILLAÇA, N. (2003). O que o corpo não pode? Jornal do Brasil, 15/02/2003, s/p.






Recebido em 24 de março de 2003.
Aceito para publicação em 25 de maio de 2003.


                                

Nenhum comentário:

Postar um comentário