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quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Tempo: velocidade e lentidão



Tempo: velocidade e lentidão


Jorge de Campos Valadares



               As dimensões essenciais a serem aceitas como constituintes do tempo estão no enigma e no mistério, mas o espaço, como contraponto, pode trazer alguma luz sobre o que seja essa invenção humana.  O tempo materializa o prazer, a realidade e a memória e o mundo enfim.  Tempo linear (Chronos) ou tempo de explosão (Kairós), como sonhavam os gregos, podem ser objeto de uma Estética e de uma Ética para se pensar os acontecimentos, a ciência e a moral que os com-forma.  Pensar é uma prática de tentar apreender e compreender os acontecimentos e o comportamento moral e científico.  A arte é uma questão para o sentir e tem mais a ver com o que é obsceno à linguagem.  

               O tempo da convivência é um tempo a ser continuamente negociado com o Poder: o poder interno, superegoico e o poder externo, político, com as regras e o Estado, hoje, um Estado sempre de Exceção.

] Palavras-chave: Tempo, psicanálise, ética, poder



The dimensions accepted as essential parts of time include its enigmatic and mysterious sense, but the notion of space, as its counterpart, can cast some light on what might be considered one of the most important of human inventions.  Time materializes pleasure, reality, memory in an ever-changing world, always “another” world.  Linear time (Kronos) or explosive time (Kyros) as the Greeks imagined, can be objects of one’s ethics or of one’s esthetics, which help us think.  Thinking is the practice of trying to grasp and understand events and moral and scientific behavior.  Art is a matter of feeling as it deals with the ‘obscenity’ of language.
          Time for being together is time to be negotiated with political power: inwardly the subjects negotiate with “ideals” and superegoic forces and externally with the State, which, today, is always a State of exception.

] Key words: Time, psychoanalysis, ethics, power

Este trabalho foi apresentado no seminário “Um tempo para o tempo”, organizado pelo Museu da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, em 27/9/2004.  Foi mantida a forma oral da apresentação.




               A primeira palavra quando se fala de tempo é mistério ou enigma.  Há, sim, o tempo das estações, o dia e a noite, as horas e os prazos, o tempo do mundo, enfim.  Há também o tempo sem tempo do acontecimento, do impensável, do lapso a sair de dentro de nós, movido pelo sonho e pelo desejo do inesperado, do que é inconsciente e que pode ser, talvez um dia, apreendido.  Mas há no tempo algo indizível, algo invisível a se delinear nos olhares inquietos das crianças, na resignação de alguns idosos.  Esse tempo é um tempo, quando muito, para a poesia.  Desse tempo não tratarei, por incompetência.  Desculpem-me.  Felizmente, o cuidado da programação deste colóquio traz também poetas aqui para estes encontros.

               Uma das questões iniciais a se tratar quando se cogita sobre o tempo é perguntar-se sobre sua diferença com relação ao espaço.  Tentar historicizar apressadamente o espaço confundindo-o com o tempo é perder uma oportunidade de, na diferença, buscarmos especificidades do sonho.  O sonho os junta, separando-os.

               Sabemos que no mais profundo de nós o tempo e o espaço se confundem.  No inconsciente há tudo ao mesmo tempo.  É o Princípio do Prazer que chega ao sistema motor, tendo partido desse mesmo sistema, exigindo uma “experiência de satisfação” na urgência de “atenções específicas”, sempre buscadas pela necessidade.  É nesse sentido que Betinho fez a afirmação que tanto impacto nos causa: quem tem fome tem pressa.  Por isso, por mais que flutuemos nossa atenção na vida a se repetir, a ter seu ritmo, devemos considerar, além do tempo do pensamento, o tempo da atenção, do cuidado.  Aí também há um cerne, um coração. 
             
Na realidade é aí, no cuidado, que estão as exigências a serem satisfeitas.  Porque no humano o essencial é a apreensão, o entender-se aquilo que é vivido pelos sentidos.  Porque no humano o essencial é apreensão, o entender-se aquilo que é vivido pelos sentidos.  O que é vida? O que é estar vivo? Nesse percurso, o do gozo particular do motor, na alegria dos movimentos do corpo, em que o sujeito funda sua ek-sistência, fora do ensimesmamento: aí tem sua maneira, seu tempo próprio de inventar espacialidades, juntamente com uma re-invenção singular dos tempos.  É nesse sentido que entendemos a afirmação do professor Milton Santos (1997): “a força dos fracos é seu tempo lento”.  Realmente, para a consideração social, os ditos fortes não têm o mesmo tempo e não têm a “necessidade” ou um “interesse do ego” de inventar os mesmos espaços.  A urgência dos ditos fortes é sempre motora, muscular, e tem a ver com o poder.  O tempo do confronto entre as visões, entre o sujeito e o mundo, é um tempo lento, um tempo de se sofrer encontros e desencontros.

               Mas, o que vem primeiro? A realidade vai, no seu tempo – há um tempo do mundo que não está necessariamente globalizado, representado, faz parte dos mistério das épocas – exigindo espaços dentro do sujeito para a entrada do outro e, por sua vez, a estar também imerso em um espaço maior que é a Cultura.  Esse fenômeno da pisada do sujeito na cena do mundo vai exigir acordos internos e externos, elaborados pelo sujeito humano, possibilitando-nos a pergunta de Freud.  O que viria antes, o que daria início, qual seria o disparo ao sonho? Seriam os rastros da recordação (Erinnerungspuren), algo inserido na memória, no vivido do agora, ou os restos do dia, aquilo que a realidade nos vai impondo, e, nos acordos, vai possibilitando esperas para a referida satisfação? Não se trata de saber como nasce o sujeito, mas como nasce o sonho, aquilo que o faz renascer sempre.  Notem que citei o termo de Ortega y Gasset: disparo.  Freud emprega o termo Anstoss, que é o kick-off, o pontapé inicial, para dizer do nascimento do sonho.  Não se pode falar em um tempo humano sem se falar de movimento e espaços, pois são coisas distintas. 



O INTERNO


               Quanto à questão relativa à realidade interna, à questão da memória, dos rastros da recordação, sabemos que se iniciam em nós como rastros nas areias das praias, onde o mais importante são os vazios, às vezes desaparecidos, mas a estarem lá na memória.  Eles estarão sempre estabelecidos em nossa vida interna, já pela experiência do outro como de um Eu Ideal inicial.  Neste Eu Inicial está o contínuo recém-nascido a estar dentro de nós, sempre a fundi-lo com a mãe-mundo, possibilitando à criança uma vida psíquica inicial, onipotente, que o faz imaginar que tudo provém de um si mesmo ideal e idealizado, que faria frente a qualquer falta, qualquer carência (aí não é possível pensar-se em tempo).  Por isso, quando fazemos um projeto, estamos sempre pensando nele, mudando-nos e mudando o mundo, de forma muito inteira.  Assim, Whitehead afirmou que todo o escrito depois dos gregos poderia ser acrescentado à obra de Platão apenas como uma nota de pé de página.  Somente assim podemos alcançar, com o pensamento, uma memória bioquímica, já a funcionar intrauterinamente, mas também dependente, embora de forma inconsciente, da vida exterior.  Para desenvolver um pouco de crítica e de autocrítica, indispensáveis à nossa condição de sujeitos, a qual não vai colocá-lo subordinado a uma lei a reger sua vida em comum, vida com os outros humanos, mas também vai oferecer-lhe a graça do “descontentamento”.  Trata-se aqui de um tempo de prazer, com múltiplas espacialidades, formas e formações – e paradoxalmente vai propor-lhe o sonho de não assujeitamento, e o desejo de um mundo sempre outro.  Não se trata mais de fundir-se com o mundo e de estar satisfeito, negando sua precariedade e sua criatividade, mas de confundir-se, perder-se em uma multidão de ideais.  Agora não se trata mais de um eu que seja ideal, mas da busca do ideal do Eu, um ideal para o eu, que já nasce múltiplo, pois o sujeito sabe, como diz Elias Canetti, que estamos em círculo, em volta de uma chama, mas o ideal é a imensidão que está às nossas costas.     




O EXTERNO

               Quanto à vida, ao tempo e à espacialidade externa, sabemos que há também aí uma organização política dos tempos e dos espaços.  A análise institucional freudo-marxista francesa dos anos 1960 permitia-nos uma perspectiva através da qual víamos claramente as tarefas se estruturarem, partindo de uma organização dos tempos, dos espaços e dos salários.  Há a hora, o tempo ritualizado de se encerrar o “expediente”, a altura diferente do espaldar das cadeiras e a diversidade de altura do plano e tamanho das mesas, e quanto aos salários, é dispensável, em um país como o nosso, qualquer comentário.  Sabemos que no Brasil vinte mil famílias detêm 50% de nossa renda, isto é, o tempo da produção, o tempo da poesia dos outros 50%, isso é externo. Devemos saber que o tempo da convivência social é hoje um tempo a ser negociado com o poder: de um lado com os ideais do Eu, com as fragilidades do ego e com o superego, de outro com o poder político e as regras do Estado hoje governado pelo capital, um Estado sempre de exceção, como nos mostra Agamben (2004).

Sabemos que, vendo do alto, quer dizer, vendo de longe, a Geografia é a História espacializada e a História é a Geografia em épocas diversas, como disse René Reclus.  Se nos detivermos no olhar, se nos aproximarmos mais afetivamente, investidamente, se olharmos o tempo com mais delicadeza, veremos nos espaços algo mais que isso antes da transformação imposta pelo curso da História observável nas exterioridades.  Dessa maneira, poderíamos ter histórias e geografias diferentes no escorrer do tempo.  Já se sabia, na sua função renascentista, que o “que fazer” da perspectiva era uma questão mental e não uma questão de ótica.  O olho não está aí para ver, como lindamente o diz Tahar Ben Jelloum referindo-se aos pintores árabes.  O olho é apenas uma ferida no rosto.  Não podemos ver o que está ocorrendo no Oriente, nem no 11 de Setembro, ou no Iraque, e, ultimamente, tampouco na Rússia, quando o terror vem assassinar uma multidão de crianças ou derrubar moradas com suas guerras.  E tentar assim, em um outro tempo, com nosso grito inicial, calado por impossibilidades impensáveis, a invenção de um espaço comum.  Não podemos ver, por mais repetidas que sejam as imagens em nossos vídeos, o que foram as bombas explodindo; é uma física pós-einsteiniana, os aviões colidindo com a obra humana.  Mas nós podemos sentir, como o fez o ministro da justiça de Israel, o que seja uma velha levantando escombros na Palestina para procurar remédios que lhe seriam vitais.  Não posso ver o número, a representação estatístico-matemática dos mortos das torres no New York Trade Center, mas posso, se der a mim mesmo um outro tempo, sentir um frio na alma, vendo no meu vídeo uma pessoa que se joga no infinito, de cima de quatrocentos metros.  Aqui, também, somente a arte pode nos socorrer com alguma tematização daquilo que está a reger os tempos.  Somente os sentidos, o sentimento dos sujeitos, pode lhes devolver o tempo da vida.  O tempo de explosão, o tempo de Kairós que o pensamento grego contrapunha ao tempo linear de Chronos, não encontrará espaço em ciência alguma para sua representação.  Esse é um tempo do acontecimento a interessar, primordialmente, ao sujeito.     




UM TEMPO INTERNO-EXTERNO      


               Qual é o tempo para a continência, do conter-se e, com isso, poder acolher ao outro, qual o tempo do cuidado quando, por exemplo, os cientistas políticos estão a dizer que “o terrorismo veio para ficar”? Não será somente o “encanto” do “visual” a nos proporcionar verdadeiros “encantamentos”.  Chegam a nos cegar, como já nos advertiu Freud quando falou sobre os distúrbios psicogênicos da visão.  Esse tempo pode construir uma estética a-ética.  Por mais que nos organizemos em mesas como esta para falarmos sobre o tempo, cada vez mais descobriremo-nos precários em seu conhecimento.

               Braudel (Sevalho, 1997) e outros tantos, ao tratar dos historial dos <Annales>, diferencia o fenômeno da duração em tempos longos – relativo à estrutura, à geografia humana, à lentidão necessária à cultura, a aparente permanência das relações dos seres humanos com o meio dito natural, fundando aí hábitos em uma moral imposta pelo trato com a paisagem; tempos médios – com suas oscilações e ciclos, dia-noite, as estações etc., a conter conjunturas sócio-eco-antropológicas nas relações societárias; e o tempo curto – aquele tempo do impensável, o tempo do acontecimento, podendo chegar a cercar a vida de forma mortífera em sua velocidade.  Aqui, no tempo curto, tempo é ressonância, refração, reflexão, como dizem as pessoas que trabalham com grupos.  Tempos de infinitude no que é finito, tempo de afinidades, de conformação, ou de aquiescência, para empregar a expressão de Jean Pierre Lebrun (2002), “do que não se quer confessar a si mesmo”, como diz René Kaës (1997), mas que o outro pode “com-sentir”.  É o tempo da einheitliche  Persönlichkeit freudiana, da pessoa, por um certo tempo unificada.  Ficamos então com um tempo de terror, um tempo de medo.  Tempo para “os fundamentos escabrosos”, essa parte escabrosa (dieses heikle Stück) tão primitiva, mas que “a sociedade não gosta que lhe seja lembrada”.  As sociedades psicanalíticas não podem se furtar a esse exame de sua própria crueldade, como mostrou Derrida (2000).  Esse tempo do exame interno pelas próprias instituições é um interesse social, pois trata-se aí de uma aquisição humana a ser interpelada pela sociedade maior, sobre seu fechamento, sobre seus pactos denegativos.  Somente assim podemos chegar a alguma consciência, inclusive a consciência de uma estética do mal, de vez que, como diz Marcos Moreira, nem toda estética é também ética.

               Peço-lhes, assim, uma atenção especial para o “acontecimento”, central no surgimento dos sujeitos que os psiquiatras, às vezes, nomeiam pejorativamente como surto.  É sempre encontro com o mundo não aceitável, tempo de cura como mostrou Freud, nunca um evento programável, nunca cabível em um desejo de sucesso, mas a ser decisivo na vida dos sujeitos.  Esses tempos estão nas peregrinações em torno da morte, em uma perda, no momento de um casamento, em um amigo de quem nos desencontramos, em um défoulement a ser sentido e impossível de ser visto pois é gesto de des-com-fusão com a massa, a foule.  A Administração, quando é unicamente uma ciência da representação e, portanto, um trabalho com a morte e da morte, é implacável com os convívios e as presenças.  

               Prigogine e Stenger (Sevalho, 1997) pensaram e trabalharam com a dissipação de energia, a “flecha do tempo” no escoamento e a transformação irreversível do tempo em uma “encarnação de fluxos” e em um mundo “que queima como uma fornalha, sem recuperação concebível”.  Pensar o tempo é reconstruí-lo, já que, como mostrou Heidegger, construir-habitar-pensar são a mesma coisa.  Aí, no tempo prigoginiano, temos melhor espaço para pensar o tempo da diferença, dos gradientes de energia, às vezes a ficarem engastados no sistema motor, nos ressentimentos e mágoas, a não suportarem as infidelidades do meio.  Aí pode estar a denegação do tempo que nos comove e que nos possibilita uma construção coletiva de seu conhecimento.

               Se é verdade que representações e memórias abrem tempos, como nos efeitos imaginários dos discursos, tempos nos quais aquilo a ser dito nos comove, não esqueçamos que a palavra, no imperfeito da voz, quando passada ao tremor de seus sentidos, comovida pela presença viva do outro, possibilita o convívio e um tempo de devires possíveis.  Por essa ocasião as urgências de satisfação serão resolvidas, ao mesmo tempo, na lentidão do tempo, nas circularidades e ciclos do tempo médio e do curto tempo da emoção, a se sobreporem.

               As representações seguem ideais, às vezes laboriosas, em sua vontade de permanência.  É o tempo do poder.  É preciso distinguir-se o tempo do poder, o tempo da autoridade, e o tempo das competências diversas (Lebrun, 2002).  Somente assim poderemos sentir os diversos tempos.  O tempo da convivência, da amizade,deve ser negociado com o poder.

               O poder segue modelos de governança e divide o tempo, negociando-o.  Mas os modelos estão aí para serem deformados, como nos ensinou Antonin Artaud, e suas linhas devem receber marcas da expressão.  A expressão é outro tema que toma o caroço da alma, que se refere a um outro momento, o tempo do coração, na vida do artista.  O poder somente pode evoluir com a colaboração de um tempo, para a consideração das competências.      

               O conhecimento do mundo marca, como adverte Tassinari (2001), um tempo que se junta com a expressão do artista e a transformação que ele está a propor e, continuamente, está a completar sua obra.  Devemos pensar que Il faut de tout pour faire un monde e eu diria, recorrendo à etimologia, o co-nascimento com o mundo – ainda aí, um tempo – conformaria, em uma Bildung co-extensiva, uma “formação”, com tempestade e pressão, como quiseram Goethe e Schiller e tantos outros do Romantismo.  É uma tensão que se espalha e vai reger a tristeza e a alegria do mundo.

               Nossa ignorância na política, na educação e, infelizmente, também na psicanálise, sobre as possibilidades da arte, parecem estar com os dias contados.  Não me refiro à arte como lugar de ilustração, uma redução que é consequência do pedantismo.  A tecelagem, para empregar a expressão de Olga Ruiz Correa (2002), inclusive no trabalho com o “suporte”, exigirá do conhecimento, sobretudo daquilo que René Kaës chamou de pactos denegativos; exigirá um conhecimento, uma volta ao lugar do outro, dos outros saberes, como o fez Freud ao construir seu historial da cultura e só então fundar sua metapsicologia e sua clínica.  A arte, na “Psicopatologia da vida cotidiana” e em tantos outros de seus textos desde o “Introdução ao narcisismo”, quando trata de adquirir o que ele chama de Amor Próprio, seria impossível sem Signorelli, sem Michelangelo, sem Leonardo da Vinci.  Assim também a reinvenção da antropologia desde “Totem e tabu” e tantos outros saberes. 
 
               Não temos tempo a perder com a ignorância do tempo, das épocas, sobre os tempos: ele está denegado, mas preso ao corpo, pela malhação, pelas cirurgias plásticas, na devoração cotidiana, maior e mais voraz quanto mais queremos esquecer nosso percurso e o tempo em que nele nos consumimos.  O tempo, agora, é o de Chronos – que se alimentava de seus filhos – que nos força, também, a fazer o mesmo com os nossos.  Somos jovens como eles? A estética do texto bem “construído” é fruto desse tempo de falsos-jovens... de belos discursos.

               Há um trabalho da arte – e cabe uma escuta a ser feita aos seus tempos.  Há todo o “tenso, denso e imenso” do trabalho da arte e de toda a Cultura.  As costuras, como mostra o trabalho de Lena Bergstein, são essenciais.  Esse trabalho implica um descozimento, uma queima, como no trabalho sofrido de Antonin Artaud (Thevenin, 1986) e como todo sofrimento e alegria a se enfrentar no uso do mundo, suporte da vida humana.

               Parecemos ter chegado ao fim da possibilidade do pensamento feito na “imposição” da leitura única de contextos.  Pensemos no que marcou Claude Lefort: o autoritarismo é o fenômeno de nossa época.  Zusammenhang era um termo caro a Freud, e ele o repete compulsivamente.  Uma contextuação representada pelo discurso único é uma imposição.  Para introduzir o tema da denegação Freud nos fala antes da afirmação (Vereiningung).  A denegação se contrapõe à afirmação (Freud, 1925).  Somente há uma porque existe a outra.  Toda afirmação, toda síntese, é um gesto de poder.  Tentamos, nos diz ainda Freud, inicialmente através de uma contra-ordem, uma Abweisung, a construção de nosso descontentamento, um descozimento (Thevenin, 1986).

               Freud criou um pensamento para dissolver idealizações que se tornou um Ideal.  Não cultivemos as projeções de nosso imaginário nos outros, desconfiemos das transferências e desconfiemos do brilho que procuramos, pois ele nos ofusca e nos impossibilita vislumbrar o outro.  É nesse sentido que François Rustang (2004) fala da “Indiferença ao Sucesso”.  Indiferença a um tempo de brilhos e ofuscamentos.  E foi para dissolver transferências, idealizações e nos ajudar a construímos uma autonomia que Freud deslocou a questão do tempo do olhar para o tempo da audição, tentando envolver mais um sentido, mais um sentimento do mundo.  “Temos apenas duas mãos e o sentimento do mundo”, disse o poeta.

               A arte nasce do trabalho de procura do outro, lugar onde o artista se reconhece.  Não deveríamos perguntar, sempre juntos e com a ajuda da arte, por um novo texto, um novo quadro, uma outra escultura do mundo, um novo monumento e, por um tempo, ousar incorporá-lo?  “Ergueu o povo o talhe audaz de um monumento, finjamos ser o nosso, ereto e corpulento, domina a vastidão, por milhas e mais milhas, ao cobrejar ondeante do infinito das coxilhas”, disse um poeta do interior gaúcho muito simples e apaixonado.  Mas saibamos que o monumento é construído por um tempo, e que estamos, na vida, sempre a fingir, a inventar.  Passado, Presente, Futuro. 

O passado pode nos prender.  As recordações podem se apossar de um tempo presente, a ser sobretudo de presença e de convívio.  O presente a negar o passado é um lugar oco.  Pode nos fazer esquecer a “flecha do tempo” e que alugamos um lugar e devemos entregá-lo em ordem para aqueles que estão por vir, como não se cansam de insistir os ecologistas.  O presente sem passado é o esquecimento de que haverá futuro.  E de que estamos a fazer um mundo.  Se o futuro a Deus pertence, Deus está vivo em cada um de nós, a vivermos o que plantamos.  Aí mudamos de Deus, do sublime, em um tempo curtíssimo, para o Demo, o ridículo.  O futuro é um tempo de colheita do fruto que ainda não desfrutamos.  Mais uma vez Freud nos ensina: “do sublime ao ridículo não há senão um passo”.  O sublime é o divino e devemos aí marcar nossa diferença.  Mas dessublimar, desencantar o mundo, com a urgência, com a pressa de quem quer a perfeição do divino, é o ridículo a nos levar ao mal-feito, uma “passagem ao ato”, como dizemos em psicanálise: a ação da brutalidade motora a desconhecer o destino e o tempo humanos, tempos do pensar e do sonhar a poderem pedir lugar para um gesto onde a vida possa prosseguir seu curso no tempo de continuidade.




REFERÊNCIAS


·        AGAMBEM, Giorgio. O estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
·        BRANT, Luiz Carlos. O processo de transformação do sofrimento em adoecimento na gestão do trabalho. 2004. Tese (Doutorado em Saúde Pública). Fiocruz, Rio de Janeiro.
·        CORREA, Olga Ruiz et al. Vínculos e instituições.  HTTP://freud-lacan.com/articles/article.php?id_article+00418 Acesso em 23.11.2004.
·        ROUSTANG, François. Indiferença ao sucesso. Anais do Colloque “Éloge Du Risque”. Lyon, abril, 2004.
·        SANTOS, M. A natureza do espaço – técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1997.
·        SEVALHO, Gil. Tempos históricos, tempos físicos, tempos epidemiológicos: prováveis contribuições de Ilia Prigogine e Fernando Brodel ao pensamento epidemiológico. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, Escola Nacional de Saúde Pública. V. 13, n. 1, março, 1997.
·        TASSINARI, Alberto. O espaço moderno. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
·        THEVENIN, Paule. La recherche d’un monde perdu. In: Thevenin, Paule e Derrida, Jacques. Antonin Artaud. Dessins et Portraits. Paris: Gallimard, 1986.








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