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quarta-feira, 6 de agosto de 2014

SUBLIMAÇÃO EM PSICANÁLISE



SUBLIMAÇÃO EM PSICANÁLISE

Jorge de Campos Valadares


APRESENTAÇÃO


O tema da sublimação, como o outro que o acompanha, o da simbolização, toca-nos de perto na medida em que nos perguntamos pela quota de erótico no que é sublimado.  Por outro lado, nos perguntamos também, talvez por uma forma viciada de pensar, quais os momentos ou estágios da sublimação.  Aquilo que faz “um adiamento devido ao pensamento” ou ao próprio pensamento (Denkaufschub) e está entre o estímulo ou encanto (Reize) – que se liga às paixões ou ao enamoramento ou às lideranças... – e à fuga ou ao recalcamento.  Há um adiamento de descarga e um gozo nesse adiamento.   

               Com Freud, que soube se interessar pelos inícios, sabemos ainda que aqui também há uma questão primordial, alguma “Urbildung”, uma formação primeva, uma forma inaugural de organizarmos nossas “moções pulsionais”, nossas emoções: um “subterrâneo da Odisseia”, onde o Totem aparece substituindo (sublimando?) laços carnais e iniciando uma formação da “alma psíquica” ou “instrumento da alma”.  Ele vai nos dizer em nota de rodapé no livro Totem e Tabu, citando Frazer, que o laço Totêmico é mais forte do que os laços de sangue ou de família no sentido moderno.  O moderno aqui é que há um “aparelho de pensar pensamentos”, que o homem como ser de cultura representa o mundo, a natureza, e essa é a sua forma de vivê-la.  Que laços são esses, que saem da carne, das paixões, dos estímulos, dos encantos (Reize) e se “desprendem” em algo mais amplo? Ou, quem sabe, parte desse “algo mais amplo” e força novas ligações, é o fiador dos desligamentos no plano do sujeito?

               Algo mais, “uma nova ação acrescida ao autoerotismo”, nos diz Freud no texto sobre a entrada no Narcisismo.  Vamos então falar a partir, “talvez”, de um sentimento de satisfação ao vencermos dificuldades.  Algo que se passa em ato, uma nova ação, nos permite um “sentimento de si mesmo”, autoestima, e funda o narcisismo.

               Sabemos que o tema do ligar/desligar (Bildung/Entbildung) é tema que nos remete ao social, aos “despreendimentos”... à pulsão de morte por um lado, e a Eros por outro.  Algo que se passa em ato, um prazer no limite do social e do indivíduo, inaugurando vias para o sujeito e para a comunidade humana.  A sublimação será então um gozo de uma satisfação narcísica, no ato de êxtase, do salto para o simbólico.
              


OS TEMAS DO “INÍCIO”


               O que aprendemos com Lacan é que devemos retornar.  Aliás isso já fazia Freud.  Onde “isso” estava (Wo Es war), aí devo me tornar.  Para começo de conversa devemos então voltar sempre ao texto de nossa própria análise e à análise do texto de Freud.  Se não quisermos repeti-lo.  No início nos identificamos “como uma criança maravilhosa” na qual imaginamos que nossos pais nos queiram transformar, e a “trabalhamos”.  Um trabalho de sonho e um trabalho de luto.

               Há um mergulho no fundo de nossas emoções, sentires, afetos e, na névoa, no mundo dos inícios, das “schwankende Gestalten” das “imagens nebulosas”, “claudicantes”, no dizer de Goethe, vamos olhando com “estranheza” nossos duplos, nossas identificações, nossos projetos.  Assim mesmo: projetos.  Falamos sobre um movimento de angústia ou medo (Angst), de um impulsionamento, de uma projeção que nos faz confundir um homem grande com um “grande homem”.  Bem, isso Freud nos diz no “Moisés”.  Um pai está no herói e os heróis engolem nossas carnes e afetos nas paixões, nos encantamentos, nos seus estímulos (Reize).

               Sabemos através do poeta que o “mundo é maior que o nosso coração” e através de  Freud que os poetas dizem “cem anos antes” todas as verdades da ciência.  E há encantos, destarte, que são necessários.  Aí uma dúvida no texto de Freud e nosso que o acompanha.  As projeções, os projetos que lançam o sujeito no mundo são movimentos anteriores a qualquer introspecção mas são, também, os estímulos, os encantos que o situam no social... algo de fora dele o situa...

               A tentativa inicial remete-nos a uma “repetição” (Répétition), um ato, uma ação (Handlung), um movimento, como a “ação” em um filme, essa palavra que Freud tanto repete... em que há um comércio, uma vontade de “aparecer” na cena; aquela do figurante lançando o seu projeto de ator.  Uma pessoa envolvida em cinema me disse que no momento da filmagem “pode-se ver a energia no ar”, as invejas, os ódios, a tentativa de aparecer entre os “figurantes”.  Uma fraqueza no instrumento da alma (Seelisches Instrument) – e aqui Freud tem dificuldade de falar dessas marchas e contramarchas do aparelho anímico na organização de emoções que têm o seu aparecer (Erscheinung) junto com o primeiro passo ou com a repetição compulsiva desse passo pelo sujeito em seu grupo, com seu grupo.  Acho esse o sentido do “onde” para nos localizarmos frente ao texto de Freud, “Wo Es war...”.  A fraqueza do “Instrumento” que nos leva a identificações, a projeções, a fim de nos tirar de certa transparência, ou seja, do lugar das “revelações”, portanto, das “profecias”, e ao mesmo tempo aí nos eternizar desde o início, porque é o entrar nessa condição de “transparência” de vento (anymus) “anima”, de sopro que faz a consciência,a fundação do “aparelho anímico” (Seelich Appparat) a nos “deslocarmos”, a voarmos no mundo.  Freud se refere à alma de massa (Massenseele), e ao aparelho da alma e não à “mente grupal” ou ao “aparelho psíquico”.  Sabemos que essa alma não é religiosa.  E esse sopro a partir do qual “isso”, o id, o barro, se “torna”, implica uma “travessia”, um “giro”, algo da ordem do estilo do sujeito, onde “rodando a baiana” para exemplificar um estilo, encontra uma estratégia de gozo e funda, a partir daí, sua tática, seu ser no mundo, sua forma de ver e viver o mundo.

Mas voltemos à dúvida.  No momento inicial há um êxtase, uma saída na carne, na paixão – não estamos falando de apatias, onde a paixão está aí “aprofundada no centro do corpo e da terra”, para empregar o termo de Nata Minor, mas já não fala mais o sujeito dessa viagem ou, como isso seria pedir muito para esse momento, “nem se nota” nesse percurso, no curso desse movimento.  Na apatia, sem o sopro desse vento (anymus), dessa alma, o sujeito procura no sintoma algo que lhe “empresta autoridade”.

               E então, nos primórdios, precisamos de uma incorporação (Verkörperung) – as traduções trazem personificações, mas não se trata ainda disso –, uma êxtase situada, um encosto (Anlehnung, apoio, anáclise, a palavra de Freud é a mesma que a do espiritismo, da umbanda – Chebabi nos chama a atenção).  Mas um encosto que vai nos situar em uma outra constelação (Zusammenhang).  Essa palavra de Freud, constelação, que Lacan nos diz dever ser usada “no sentido dos astrólogos” permite que situemos o momento do ato analítico como uma repetição (Répétition, Probeaktion), ensaio, prova de orquestra, em que harmonizamos/desarmonizamos nosso estar no mundo. 

                          Criamos as intenções que antes eram tensões internas, criamos fantasmas.  As ideias já estão aí fornecidas pela cultura, o ensejo, o contexto (Anlass) é que “aprendemos”, tomamos no momento do pontapé inicial, do “kick-off  (Anstoss) do sonho.  O que nos faz levantar essa ou aquela questão a respeito do afeto? Onde começa nossa “atenção”, nossa “consciência”? Sabemos somente que ela não existe sem uma moral.  “O homem não seria capaz de descobrir essas ideias”, essas sublimações, por si mesmo, ”nos diz” Freud.

               Freud vai à Bíblia, olha Moisés e se funda.  Funda sua teoria.  Daí lê o mundo, não com uma última interpretação, e sim, talvez como “mais uma leitura a ser incorporada às Talmud”, nos diz Célio Garcia.  Isso nos permitiria deslocar para e da periferia.  O Talmud, como sabemos, contém as leituras periféricas de um texto central.  Nós, com a Psicanálise, precisamos algo mais do que um Pai, do que um herói, do que Moisés, do que Freud... para que nos fundemos.

Precisamos ir ao nosso singular, à viagem ao fundo de nós, quando podemos “dissolver” as transferências.  É aí que Freud retorna à língua de todos os tempos, à língua das gentes.  Vai a um tempo transversal, observa com Moisés era “pesado de boca” porque falava um idioma de além-mar, de “outra época”.  Moisés, ensina-nos Freud, era egípcio, talvez sacerdote do sol, Aton, Deus único dos egípcios, que passou a adotar o politeísmo com a queda do faraó Akhenaten.  Freud nos faz lembrar que o monoteísmo sempre esteve entre os homens.  É aí que há uma incorporação, uma festa ou festim diabólico em que colocamos a penhora (Bürgschaft) à nossa legitimação, em um gozo demoníaco –, essa vertigem em que “de início” é um corpo ou um buraco onde o tempo a perder somos todos os tempos.  Na coragem desse gozo a fundação, o sentimento de nós mesmos (Selbstgefühl), da autoestima.  Sentimento de sermos, de existirmos.  Ao mergulharmos nesse abismo, destacamo-nos, e com todos os medos, angústias, perdemos a “fobia de contato”.  Aí no gozo conosco, no contato conosco, que nos afeta e nos liga, estraçalhando-nos no espelho do mundo e dos tempos.  Somos como Moisés, Freud e outros, também fundadores, heróis perdidos nos grandes homens, nas heranças arcaicas (Erbschaft).  Perdidos no espelho do mundo.  Não adianta ir ao espelho, diz Leclaire, mas vá ainda assim... Para “voltarmos” dessa perdição aprendemos a “tematizá-la”, representá-la, falamos dela e a ”dissolvemos”.

Há uma necessidade de espiar a morte, uma esperança em “Passárgada”, onde se é “amigo do Rei” no momento das histórias, das lendas “que Rosa vinha me contar”, no verso de Bandeira.  Essa a volta, esse o “encosto”, esse o verdadeiro apoio, anáclise feita de cultura: aqui a natureza do início.  Não é um mergulho sema mediação, sem a ajuda da máscara.  É um ensaio, uma incorporação de um personagem, coragem agressiva de escolhas objetais e de outras escolhas – pois o que o risco risca é o “allure”, o estilo, e se há algo de “agressivo” no “alarde” e na “ostentação”, só há fundação no “garbo e na distinção”.  Não é o caso de confessar um pecado, de expiação.  A entrada na identificação é a espiada com e no olho do herói: aquele que olha a morte no olho”.  Só aí haverá a um só tempo o sentimento de si mesmo (Selbstgefühl) tão superficialmente traduzido como autoestima.  Algo como traduzir Erinnerungsspur – recordação de rastros ou rastros de recordando – como “traços mnésicos”.  Perde-se nessa interpretação o movimento para onde os rastros apontam, a “falta” deixada na neve (com o frio que isso traz) ou na areia, com aquilo de “temporal” que apresenta, se nos for permitido o duplo sentido.



A QUESTÃO DO DELÍRIO


Do delírio sabemos, a partir de Freud, que não deixa tempo entre o estímulo, o encanto (Reiz) e o acionamento do sistema motor.  E esse movimento é expresso na delegação de autoridade, na desistência da autoria ou no “empréstimo” dessa mesma autoridade.  A voz ouvida no delírio é a reprimenda dos pais na infância e da corte de substitutos parentais.  Sabemos ainda com Freud que há uma tentativa de retorno, no momento do delírio, que parecendo ser doença é na realidade a cura e que a convicção característica vem de algo que está realmente certo e que o equívoco está em ser esta convicção todo o resto estendido.  A convicção, transformada em compulsão, diz de algo que sempre esteve encoberto na cultura e que aparece agora às claras, talvez com excesso estonteante de luz.  A cultura precisa de tempo, de história, para ouvir suas vozes.  Dizer, 400 anos antes de Freud, que Moisés poderia ser egípcio, daria certamente em fogueira.   
 
O momento do delírio é um divisor de águas.  Tem-se um acréscimo de ação, um “sentimento de si”, uma exacerbação na autoestima com empréstimos ou penhores de autoridade, de legitimação, pelo qual somos personagens de salvação, resolvemos os dramas internos e da cultura onde se pulveriza o inconsciente.  Menos dispostos a esse sacrifício, à expiação, ao lugar do bode expiatório, longe da situação do delírio, somos apenas os “homens grandes” adultos ou, quando muito, os grandes homens das fantasias de nossos filhos.

O delírio é uma tentativa de apressar as coisas.  Algo da ordem do duplo, onde o “estranho” toma outro destino e o “creio porque é absurdo” (credo quia absurdum) nos remete a tempos primitivos, a pré-ocupações de retorno.

Não pensamos nesse momento na religião de Aton, uma religião desse mundo.  O delírio se realiza em Osíris, o mundo do demônio, o que desliga tudo, mas parte já de uma experiência.  Esse demoníaco que está fora da cadeia do inconsciente é um “acontecimento, um ato registrável graças ao sintoma”, ou seja, “sem verdade ou falsidade”.  Freud fala de uma tática, uma prática.  Na realidade há um esquecimento do nome de Deus.  Deus e o Diabo aqui são iguais, não há “precipitação” ou “entrincamento”, há uma volatilização.  Nem ligação nem desligamento, uma transição... Um gradiente de energia e uma transformação.  Como o calor em energia elétrica... ou essa em imagem... A nova ação psíquica sairia desse momento fundante.  Sobre o contágio pelo “Mana” Freud discorre sobre algo que pode fulminar como uma descarga elétrica.             

As ideias religiosas são presente e passado, são recordações históricas.  Há uma volta a sentimentos antigos, regressões, realizações de desejos até então sem lugar (Erinnerung + Wunsch).  Elas estão aí e são aprendidas onde “o impulso é o representante psíquico de uma fonte de atração” (Reiz Quelle).  E a pulsão está aí para falar de afetos, de paixões, de angústias, de gozo, de conflito...

Um conflito nesse levante de Deus e do Diabo é, a um só tempo, o da vingança e da ordem.  A lei que impera é aquela do submundo, do “bas-fond” e espera seu momento de inverter as situações... Ao surgir o sujeito, no momento do delírio, a ordem que reina é a das ideias que “já estão aí”.  E como a vingança costuma não deixar pedra sobre pedra, o herói fala em nome de poderes maiores... profetiza outro mundo, um mundo do “além” que, no “Homem dos Ratos” aprendemos tão bem ser o inconsciente. 

O retorno a uma nova ordem fala de uma possibilidade de história, não no sentido de “Ciência histórica”.  História, mas de uma recordação, de uma ação cordial, apaixonada ainda e que espera poder abrir para outras religações, religiões.  É assim que Freud diz a Jung que o anacoreta não é um dessexualizado e seu interesse pelo sexual, no sentido vulgar, é a volta a um interesse, a uma totalidade de início, agora coroada pela fala, pelo livro e pela natureza – uma natureza que pela “volta”, pela intervenção, já não é mais a encontrada...  É recriada em um gozo solitário que busca uma solidariedade.

O que o anacoreta busca, então, é uma “transformação em sonho de uma série de pensamentos abstratos da vida desperta”, incapazes de receber qualquer representação.  “Não se trata de elevação, de anagogia, mas de alegoria”.  Um gozo alegórico, esse da sublimação.  Ensina-nos Flaubert que as alucinações, como as de Santo Antonio no deserto, são a tentativa de conhecer o mundo, a mulher... e, por conseguinte, a morte.



O MOMENTO DA FALA

Freud não é apenas um pensador da Cultura, embora isso não seja pouco, fazendo-o como fez – mas é um de seus reinventores.  É lógico que cultura precisa de muitas invenções e aí está a oportunidade de Fala.  E os lugares de existência dependem desse ato de invenção.  É na singularidade e no estilo próprio que nos situamos, ocupamos nosso sítio.  A palavra “Besetzung”, investimento, catexia (pobre tradução!) vem do termo militar “ocupação”, lembra-nos Carlos Lannes.  Continuam as rajadas de vento, animadas pelo nosso próprio movimento, pulsações, retornos, contornos, pois precisamos olhar em volta, sitiar para situar o Outro e, então, a partir daí, lembrarmos, interferirmos, refletirmos.  São reflexões múltiplas e que assim começam a ficar mais fortes do que as “percepções”.  São retornos vários, repetições, ações repetidas que ganham a “força do Outro”, fundação do pensamento.  

Quando falamos o fazemos para um ouvido, e o corpo do homem, diferente daquele do animal, tem a boca colada na orelha.  É um corpo despedaçado, como o de Hieronymus Bosch.

A fala não permite adoradores de imagens, há que tê-las aos milhões, deslizadas, que “dançá-las”, pois que é proibido a parada na idolatria, na profecia.  O momento da enunciação, diferentemente do momento enunciado, repete algo novo ou, se isso parece impossível, repete a chegada do novo.  Mas há ainda aí poderes mágicos, “Taumatúrgicos”.  As crianças e as lendas as anunciam assim, e seu retinir, sua onomatopeia, paralizam-nos no êxtase, no “percepto”, no encanto (Reiz) de sua vida sonora...

Nessa onipotência do pensar, possibilitada pelo “orgulho da humanidade no desenvolvimento da fala”, está a “distinção”, que se transforma em “alarde”, autoestima exacerbada.  O “sentimento de movimento pela superação da dificuldade” é enclausurado na garganta.  É tensão da corda bocal que exige armação de um circo.  É a exigência da volta a um país onde não é mais possível ter todas as mulheres... é preciso escolher, ter palavra...

No “desenvolvimento da humanidade”, nos diz Freud, “o amor atua como civilizador no sentido de transformar o egoísmo em altruísmo, o mesmo para o amor sexual com as mulheres com as obrigações que envolvem não causar dano às coisas que lhes são caras, e ao amor homossexual dessexualizado e sublimado por outro homem que se liga no trabalho comum”. 

Que trabalho comum seria esse se não o de entender o que está além, em outra língua que transformou Moisés em um “pesado de boca”.  Moisés, sabemos, por vir do Egito, não falava a língua da terra de chegada... Não entendia as novas fontes que jorravam...

Saulo, o apóstolo, “homem de profunda religiosidade”, de muita religação nos tempos, nos fala de Freud, sabe dizer palavra de origem, inventar sentido, e é um ventríloquo que relata por seu mestre as perplexidades de seu povo, e, então, vai a todas as fontes.

O dessexualizado e sublimado é o elogio ao outro sem a perda da potência, de um vir-a-ser sempre em ato.  Uma “ex-tase”, mas que aí constrói uma situação, uma ação situada, e procura um espaço, encontra uma eficácia na dança do simbólico.

Simbólico, sabemos, vem do grego – “Sym-ballein” – dançar com, bailar com.



NÓS, A “MASSA” E O SUJEITO


Ligar-desligar é o tema de Freud para “Análise do Ego” e psicologia das massas.  Ligar e desligar ora ao inconsciente ora às massas, essas como as múltiplas pontilhações e afirmações do inconsciente... Mas como pensá-lo se o sujeito surge de uma independência, através das projeções, do desligamento, de uma “descarga”? Ao mesmo tempo, porém, liga-se a si próprio em “algo” que não existiria sem um olhar, uma mirada, especular, é verdade, mas dentro do clima de um “espetáculo”.  Outra vez a questão do contexto, da “interconexão” na tradução um tanto infeliz de Strachey, a “Constelação no sentido dos astrólogos” para Lacan.

Haveria uma “stase” e um êxtase concomitantes ou intercalados a partir de um estímulo ou, para não sermos comportamentais, tomemos o outro sentido de “Reiz” – encanto – tão dentro da linha em que Freud se desenvolve sobre as identificações, os enamoramentos...  

O sujeito de um certo mal-estar (Unbehagen) ou mesmo “sem estar” e, procurando ser, arriscando alguma condição “estável”, renuncia, então, a alguma satisfação pulsional, se religa (aqui o tema da sublimação junto ao das religiões); temos a ex-tase através de uma realização artística, estética, alegorias fundando-se , ele, sujeito, em um lugar novo na cultura (a redundância de o sujeito se constituir a partir da novidade é proposital).  “Sentindo-se elevado” orgulha-se, e constituindo-se “em uma realização de valor” atende à autoestima, amor ou sentimento de si próprio, autoinvestimento (Selbstgefühl), sentimento da inteireza de si.  É difícil falar desse risco, desse ato onde se constitui o sujeito.  Por meio de um salto em que o que é sublimado é confuso Freud, nos “Três Ensaios”, junta a sublimação à formação reativa.  Alguma renúncia, algum amor próprio, êxtase, superação, será conseguido.  Essa renúncia seria vinda de um desenhar, de um jogo corporal; haveria um volteio no qual o corpo se surpreende ao falar, no qual o sujeito dá uma meia-volta e, em um re-lance, olha para trás e recebe novos olhares e novos “manas”? Do mana o “Totem e Tabu” fala como uma esquiva fundante ou como uma estratégia de gozo, de enlevo, de abandono nas alturas de enamoramento, de autorização.  Um desamparo (Hilfslosigkeit) a um só tempo constituinte ou exterminador.  Esquiva, desenho, mas que deverá fundar outro curso, outra história.

Esse amor próprio é assim possibilitado através de um desvio, de uma troca da rota pulsional.  Uma “renúncia” que possibilita uma aceitação pelo superego, a aceitação dos pais “no início” e da cultura em um percurso mais amplo do sujeito.  Fala-se nesse momento de uma transversalidade temporal ou de uma contextuação, uma ação ensejada, uma “constelação” atemporal.
Dizemos também de uma certa existência do sujeito em suas “contaminações” pela “necessidade” (crescer é questão de vida ou morte) pelo “contágio” metonímico, pela fetichização, pelas pulsões do ego na autopreservação, fundadas em “encostos” (Anlehnungen), mas saindo do “literal” das pulsões de domínio, da autoconservação (Selbsterhaltung), dos apoios, das anáclises para as lateralidades, para o corpo erógeno.  Também falamos do caminho inverso pois sabemos “que certas ideias só se transformam em atos quando os indivíduos estão em grupo”.  E desde que não acreditamos na energia do “astral”, uma vez que o gozo é de natureza individual, a energia do grupo é uma “evolução” de anáclises, de apoios, de colos, de “encostos” (Ahlehnungen).       A “ação” da transferência é algo que “em ato”, em um acontecimento no sentido da ergonomia, sublima e descarrega.  Vai e, a um só tempo, volta.  Um jogo, um desdenho da pessoa do analista que deveria arranjar mais “parênteses” para entrar e lá ficar, para que o sujeito possa de lá sair, sair-se bem...

Contágio, hipnose, desaparecimento do campo de responsabilidade (Verantwortlichkeit), ansiedade social, encosto, apoio, é a essência do que pode ser chamado consciência.  Tensão, extensão, ex-tase, gozo do prazer no sublimado, com uma suspensão nas atividades críticas e uma “continuidade” (no sentido winnicottiano) do sujeito no grupo através de posições fixas aí ocupadas e uma agressividade contrária que o sustenta, reativada nas sucessivas identificações.  




A cultura tem, por outro lado, para o sujeito, uma série de “vantagens matérias” (Seelische Besistze), animações e medidas de coerção destinadas a reconciliar o homem com ele própria.  No desamparo (Hilfslosigkeit) e na frustração o homem se apropria de algo que lhe é dado e cria uma Nova ordem, inventa nos seus movimentos e ações “atos” e “acontecimentos” que “modificam” o balanço delicado das estruturas internas e externas.  Nesse sentido, do sujeito, é que Freud vai dizer a Pfister que “tem muito respeito para com o espírito mas não sabe se a natureza terá esse mesmo respeito” (outra pobre tradução para posses, “ocupações” – Besetzungen –, invertimentos para a alma erógena).  O que conta é essa capacidade de invenção e reconciliação nas diversas “constelações”... esses os poderes sobrenaturais.

“Sabendo” na ação do seu inconsciente, o sujeito apressa acordos no seu ambiente, com o real, sempre desconhecido, e sempre “resta” ser descoberto.

É pensando nesses acordos, nessas reconciliações, que criamos uma ética que fundaria e seria fundada com uma estética.  A arte da interpretação seria a arte de descobrir resistências, apresentar ou reapresentar uma nova versão de textos nos quais novos acordos seriam inaugurados.  No teatro grego os personagens do coro que atacavam os personagens da cena (reis, duques etc.) eram pessoas da plateia, cidadãos, gente da cidade.

É lógico que o acesso a essa simbolização, ou nessas sublimações, dá-se através de uma certa perdição do sujeito, na oportunidade, no ensejo (Anlass) ou no ensaio no termo do teatro (Probeaktion), na ação de repetir (Répétition) algo ainda mais frágil na formação da alma psíquica (Seelisch Bildung).  Freud se esforça para entender essa “montagem” incessante do aparelho e do processo individual de entender o mundo e da fundação concomitante, pelo sujeito, de suas enunciações.








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