Van Gogh

Van Gogh

Pesquisar este blog

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

VIVER: FAZER, SENTIR, PENSAR



VIVER: FAZER, SENTIR, PENSAR

Jorge de Campos Valadares

Todo en ti fue naufrágio
Pablo Naruda1

Pelejar por exato dá erro contra a gente. 
Não se queira.  Viver é muito perigoso.
João Guimarães Rosa2 






               A caminhada do homem parece necessitar de uma passagem de central importância: o adiamento do sistema motor durante o desenvolvimento do gesto do pensamento (Denkaufschub)3.  Adiar o sistema motor significa, inicialmente, acolher o movimento das emoções, das moções pulsionais despertadas pelas circunstâncias – quanto às externas, não será, então, mais o caso, por exemplo, da Lei de Talião, pela própria questão do adiamento; quanto às internas, é preciso considerar o conteúdo do que é, aí, inconsciente – e, com os recursos da cultura e da educação, com os ideais, as identificações, os rituais e os percursos no enredo das instituições, transformar o vivido na carne em experiência de relato e engendrar mais um sonho, um projeto de vida e propor um mito, uma nova “compreensão” para a História ou para as histórias.




            A consideração da experiência da psicanálise será central pois partiremos da conclusão de que não existe esclarecimento (Aufklärung) para as questões do desejo, centrais no viver humano.  Este se realiza preferencialmente no escuro.  Aí, no espaço do desejo, também não haverá solução (Auflösung).  Este conceito vem da alquimia, ganhou a química e chega às ciências de uma maneira “esquecida” de suas origens4.  Dizemos que o homem re-solve seus problemas. Dissolve os investimentos, as ocupações (Besetzungen).

            A filosofia, entretanto, em seu caminhar, não pode abrir mão do esclarecimento e da procura de soluções, estabelecendo um diálogo interessante com a psicanálise.  Para que essa não caia em in-consequência e aquela não tire conclusões apressadas, esse diálogo é central.

            Nesse ponto a reflexão muito singular de Ortega Y Gasset vem encontrar-se, de forma surpreendente, nas proximidades do texto freudiano.  Aqui, não seria demais lembrar a célebre assertiva: “O homem encontra-se submerso em suas circunstâncias”, assertiva esta que atravessa toda a obra do filósofo.  Ou, mais categoricamente, não pode o homem descobrir-se sem encontrar-se, “como náufrago despertado em pleno mar que deve nadar para não perecer”5 295.  As duas questões, o fato de “encontrar-se” e de “estar submerso”, remetem ao conceito freudiano de desamparo (Hilflosigskeit)6-237.  Trata-se aqui, com a prematuridade, termo a próximo a “la atmosfera del periclitado”7-444, presente em Ortega y Gasset.  É no abandono, no desamparo, perdido na sua precariedade, que o homem deve inventar para não sucumbir.  Inventar que pode conseguir alcançar algo.  Desde a condição de infante, faltando-lhe as palavras, mas descobrindo-se descoberto, já deve inventar que as pernas e os braços que o “sustentam” obedecem a seu comando e, com isso, alcançar, no sonho, o que deseja.  A partir de então, essa “sustentação” ou resistência do mundo entrará no balanço delicado do onírico e das ajudas “reais”.  Esse conceito de sustenção (Holding-Winnicott)8-104 implica em uma forma de apresentação do mundo ao homem, uma certa doçura do ambiente, que possibilita a invenção.  As coisas somente são percebidas se apresentadas ao homem quando este pode também imaginar que as está criando8-104.  É nesse sentido que podemos falar do trauma na psicanálise.  O homem encontra-se fragmentado, de um lado com um investimento, uma “ocupação” (Besetzung), uma pré-ocupação em si, um investimento (Besetzung) em si, um sentimento de si mesmo (Selbstgefühl), um narcisismo fundante9-105 o que equivale a uma autoestima, uma “apreciação” do e no próprio corpo, uma incorporação (Verkörperung) e, de outro lado, um investimento, uma “ocupação” com o mundo.  É tensionado por esta dualidade que vamos encontrar o homem a ponto de delimitar a existência como tensão5-205.  

            Aí a filosofia de Ortega Y Gasset deixa de “ser-espetáculo platonizante”, a perspectiva “esclarecedora” do conhecimento para compreender a vida como encontro na submersão.  Na realidade estamos falando de afeto, pois que essa tensão é uma energia de origem, um “rudimento potencial”, submerso no inconsciente10-276.  Esse “rudimento potencial”, de fato, no “início”, ponto de partida, é um “vazio” que não deve ser confundido com um “nada”.  Sem significação é, então, o vazio, lugar da angústia pura ou um precipício do sem sentido, uma “atmosfera del periclitado”.  A vida como enfrentamento da “resistência do mundo” e, com isso, espaço de sustentação, nos leva a pensar na instância freudiana do Ego e seus “contra-investimentos”, que são sinais de aproximação do prazer total, do sem sentido do gozo, do “desligamento” pulsional, um anúncio, um sinal é dado por “proteções”, medidas que, como o medo, são presságios do perigo.  Podemos pensar aqui no sentido instrumental da angústia e de seu vazio.

            É essa a “atmosfera del periclitado”, e, “nesse grande abraço”, entra o homem na ex-sistência”.  É dessa sedução do e no mundo aquilo de que se ocupa.  Isso vai confirmar o esforço para o homem encontrar-se.  Encontrar-se consigo próprio na “dis-tração”14-23 do mundo circunstancial, do mundo “que está aí”, para construir seu próprio sonho sua própria invenção – a invenção de si mesmo, inicialmente – e, ainda, encontrar-se com e no mundo, na atividade Simbólica (symballein – se lançar com), e construir a providência e a sabedoria dos modos de viver, a ciência, a arte e a filosofia...

            Esse encontro se dá a partir do des-cobrir-se sem socorro (hilflos), porque o seu sentir é inalienável e está no seu fundo “insubornável do ser”5-300.  Aí, o homem, através do apelo expresso pelo “sentimento de vazio”, uma representação para a in-capacidade de juntar os múltiplos fragmentos “perdidos” na sedução do mundo e das “pulsões parciais”, ocupa-se do “eu autêntico”5-300 – ou do “si mesmo verdadeiro” (Winnicott) – a partir da percepção de que “viver não coincide com nossa vocação”, pois o chamado verdadeiro do homem é para encontrar-se na perdição.  É na tentativa do “juntar-se” nesse sentimento pessoalíssimo dado na “re-sistência” da e na circunstância, na sustentação pela circunstância5-297, que temos a oportunidade de ser.  Esse vazio, esse intervalo é o lugar de encontro, e o in-consciente, salta, em momentos, aparecendo no outro, e vice-versa.

            A afirmação ortegiana de que “viver não coincide com nossa vocação” o desloca de uma posição heideggeriana na qual encontramos o homem como um “ser para a morte”.  Diríamos que em Ortega y Gasset há uma tensão diante da verdade5-300 e uma con-fusão do homem diante desta e diante da felicidade.  A felicidade, um prazer originário, não um ato, mas um “que fazer” disparado do vazio, que nos dá um sentimento de bem-estar, de disposição, fazendo-nos apostar em nós, nesse originário (Ursprung), no motor presente no “resíduo potencial” (Freud) que procuramos encontrar, para nos re-encontrar.  

            Na “dialética da razão vital”, entretanto, esse re-encontrar implica um afazer ou em um “que fazer” onde as avaliações, centrais para a auto-“estima”, fazem parte de um labor não profissional4-299, distante do “mal-estar”.  É na confirmação do amor próprio a cada tarefa autoimposta, a partir do ideal, que o homem retira alimento para o “sentimento de si mesmo” (Selbstgefühl), inicial, sua autoestima.  Podemos assim nos conduzir à confirmação do “bem-estar” narcísico9-165.  Este bem-estar – um sentimento de si mesmo, um prazer de si – é a realização do projeto sempre inacabado, como no Sísifo, e que consiste em um salto, na realização de uma representação “insubornavelmente” presa a seu fundamento, ao seu “fundo”, ao seu início, e ao múltiplo de suas circunstâncias, como é, por exemplo, o caso do corpo e do estado atual do conhecimento.  Somente daí, da reconsideração do novo encontro desses elementos, é que poderemos delinear o que chamaremos “minha vida”.

            Na modificação do ambiente, embora visando um re-encontro do “sentimento de si”, nas voltas da perdição e na sedução do mundo pode o homem afastar-se de si.  É a situação da modernidade.  O trabalho (tripalium), como profissão, é um momento dessa tortura, desse afastamento de si, do pro-jecto e da comunicação com o outro – sempre um outro de si mesmo – com a qual está “co-intensionado ao objeto”11-67.

            Esse “outro” condiciona o des-envolvimento do sujeito, pois esse, nas suas avaliações, na medida em que sente os fantasmas sempre despertados por aquele, “elabora” estes fantasmas a serem “suportados” sem uma descarga motora.  Esse o “que fazer” que lhe é exigido incondicionalmente para o seu desenvolvimento.  Um outro momento do afastamento de si é o produto do próprio trabalho.  A técnica, esse “esforço para poupar esforço”9-27, levando-o ao supérfluo, o distancia de si, cumulando-o de artefatos e transformando-o em um “Deus de prótese” (Prothesengott)13-451 pre-ocupado com pedaços pretensamente seus que o ajudariam a conquistar o mundo.

            O pensamento do homem nasce no ato da inauguração da própria vida, desde que a vida de um sujeito, um não assujeitado, depende do pensamento.  “Perdido”, fragmentado nas seduções do mundo, o homem “dispara” a incorporação de um personagem que junta esses diversos pedaços soltos pelos diversos estímulos e encantamentos (Reize), gozos na “dis-tração”5-296 ou na diversão14-23.  O pensar, junto com seu irmão gêmeo, o sonhar, são as primeiras e grandes invenções.  A invenção de si mesmo é, de um lado, uma “verdade”, uma tensão, uma aposta, um risco e, de outro, uma diversão, uma distração, uma perplexidade, um susto.  É nesse susto, quando destacando-se, retraindo-se – para ceder espaço ao outro – se percebe “representando”: aí então se percebe na ex-sistência – o que, para o homem, em sua singularidade, corresponde a existir – e é aí que, nesse momento inaugural, “dá-se conta”.  Nesse mesmo instante a “circunstância” pode faltar-lhe com a “sustentação” ou “resistência” – é nesse sentido que se diz que viver é resistir, suportar – pois na tensão entre o “interesse”5-302 e o simbólico pode somente restar-lhe “agitar os braços em mortal desespero e grande abraço à atmosfera do periclitado, do que se funde no vazio”7-444.  O sentir, condicionado à expressão, ao vital, deve ser representado, pensado nas lacunas, tempos de silêncio, espaço entre as letras, lugar de angústia, a espera do outro, para configurar-se em existência humana.  Esse o espaço privilegiado por Lena Bergstein na obra de arte.  O sentir deve, pois, transformar-se em “uma perspectiva”, em um ponto de vista (Sami-Ali), para referir-se a um fundo insubornável, uma singularidade.  Para tanto, para esse destacamento, deve o sujeito poder referir-se à sua vida como “minha vida”, diferente de qualquer outra.

            Então o real “interesse” do homem prende-se inexoravelmente ao corporal enquanto uma saída do corpo, a uma “Verkörperung9-163, uma incorporação que acompanha uma personificação ligada ao disparo15-103, ao pontapé inicial (Anstoss)16-441 que inaugura o sonho e o pensamento.  Essa situação, essa ação situada que liga a “alma” à vitalidade, re-vela também a origem do “espírito”, do pensamento, pois “não se pode entender bem o sentido de uma pergunta, por mais simples que seja, se não se tem presente a situação vital que a provoca”11-103.  É nesse sentido a afirmação de Ortega y Gasset, segundo a qual o homem é um Centauro ontológico e, a partir daí, se “interessa”, esse interesse sendo uma questão radical de vida.  Só poderemos compreender esse “interesse” como fundado nas pulsões de autoconservação, e ao mesmo tempo ligado à curiosidade, às pulsões de domínio, às pulsões do saber.  Uma vontade de conhecer o mundo, e isso o leva à curiosidade, uma “natural” pulsão de saber.  Esse “natural” se refere agora a uma “segunda inocência” necessária ao homem e que o distanciaria da intelctualização como gesto de repetição compulsiva, mas o aproximaria da paixão e do viver, mesmo que sendo um gesto desesperado.  Aí está o sentido de “encosto” (Anlehnung) no biológico, pessimamente traduzido como apoio na obra de Freud.  Este encosto, mais no sentido dos espíritas, como marca Chebabi, é do que fala Freud quando lembra os espíritos do submundo da Odisseia, os quais ganham vida toda vez que provam sangue.

            Poderíamos ainda dizer que o homem, apesar de desde sempre preso à sua própria condição de prazer e de mundo, sabe de seus limites pela inevitável submersão no campo do outro5-322, necessária à sua legitimação.

            A existência é, entretanto, essencial para que se encontre algo.  Na “representação”, que é aquilo que já é dado a priori, pode estar a morte.  Re-presentar é trazer para o presente o que já foi presente.  Um mapa de anatomia não é o um corpo humano.

            O “empenho” do homem com a existência é fruto da “ex-pressão” do vivido.  É algo que vai ganhando forma com o que Ortega y Gasset chamou de alma.  Está em um ponto cêntrico de nós de onde dizemos “eu quero”7-453.  Vida é empenho e expressão.  O espírito é a manifestação da consciência, é o pensar, e este pensar, como também a pura atividade corporal, são experiências norteadas “de fora”, são comuns a outros homens7-459.  O espírito, ou a vontade espiritual, só tem sentido dentro da ideia do imperativo categórico kantiano, dentro dos paradigmas datados e localizados.  O mesmo é verdadeiro para a vitalidade, para o corporal.  O corpo é uma dádiva comum.  Assim, é somente a alma um sensório expressivo, um aparato da alma (Seelicher Apparat) o que constitui a “vida” do sujeito.  Não se trata de uma instância intelectual nem de um des-empenho corporal, mas de três instâncias interconectadas na circunstância ou na contextuação (Suzammenhang):uma ligada à corporalidade, a uma vitalidade, a um “isso”, uma literalidade da carne.  Outra, um espírito, uma consciência, uma literalidade da língua, um ego.  E outra, ainda, a alma, que junta as duas através do que as separa: os ideais e as incorporações (Verkörperungen).

            A partir do empenho o homem pensa o corpo e inaugura a técnica “fazendo”.  Essa atividade é o seu afazer primordial5-297.  O pensar e des-cobrir o corpo como instrumento da vida é invenção inaugural e constante.  A vida é o “acontecimento” em contínua renovação.  Este “empenho” orteguiano, que para Freud é um penhor (Bürgschaft) é uma mediação através da qual o homem, como ser do socius, se legitima. 

            Nesse penhor há um “concern”, uma consideração, um cuidado ou uma pre-ocupação7-67.  Uma “cura” que “se” constitui, como na língua, a partir de uma mesma raiz, como curiosidade e como cuidado.  Daí, o homem se “perde” em seus que-fazeres: conhecer – perguntar, falar – o que corresponde a pensar e a fazer, que é diferente de agir5-297.  “Pensar não em nós, mas nas coisas”, ser como “ex-centricidade”, pensar sobretudo “no que está aí”.  Do que falta, do vazio – diferente do nada – “fazer” a vida.  A vida é invenção – diferente de delírio – pois não é uma adaptação ao meio, mas uma modificação do meio à vontade11-23.  É invenção porque “viver é um modo de ser que requer uma categoria inexistente5-291 e exige, para ser vida, que parta do diferente.  Portanto, não tem como condição que seja “minha vida”, e, para não ser controlada pelo “espírito”, pela ciência e seus imperativos, que venha no “dar-se conta”5-292, no conter-se.  Mergulhar em suas próprias e-moções diante do mundo, ser “perplexidade e angústia”, energias que, vindas do vazio, passam pelos “apoios” ou “encostos” (Anlehnungen) do mundo, saltam-nos e nos assaltam em nossos sonhos.  Singularidade (Einziger Zug) à pro-cura de ex-pressão.  Desejo à procura do desejo do outro, traço único18-40, “risco”, perspectiva sempre de um outro “ponto de vista” ou “outro ponto da fuga”.  Este risco é aquele de sempre “ser trazido nu e adormecido para o placo e aí ser acordado”, não lhe restando senão fugir assustado.

            Não há, portanto, vida sem pensamento sem “seu” sentimento.  A questão central é localizar onde está o disparo ou o “chute” inicial – esse, um mistério para a humanidade.  O homem não é “inicialmente” pensamento porque o pensamento o desloca de si para uma “razão”, uma medida (racio), dada desde “fora de si”.  De onde, então, se expressa a existência como tensão?

            As questões acima nos colocam diante da perplexidade de encontrar Ortega y Gasset uma recusa a Freud.  A menos que tenha confundido teoria da sexualidade com uma teoria sexual, pensar o contrário de que a vida “sexual” – que é uma vida de investimento de ocupação – “sirva de cimento” – que é uma vida de investimento de ocupação – “sirva de cimento” ao trabalho espiritual6-444, para se transformar em “vida”, seria negar a vitalidade com presente no nascedouro da alma e do espírito.  Sem isso não se poderia afirmar com Ortega y Gasset que “o espírito é uma potência demasiado etérea, que se perde no labirinto de si mesmo, de suas próprias e infinitas possibilidades, é demasiado fácil pensar”.  É a força do sistema motor, viva no pensamento, que leva o homem, no seu deslocar-se e condensar-se contínuo, fluente e veloz, a procurar um outro ponto, de onde possa se constituir como alma, ex-sistir como sujeito. 

            Um espírito que se relaciona com a vida não pode deixar de procurar-se, de ter sua cura, um cuidado com sua origem: a e-moção ou a moção pulsional, o movimento da pulsão eu é energia e representação no des-cobrimento freudiano, ou seja, uma invenção, uma “mitologia” com a qual o homem “se ocupa” do e no seu sonho.

            Por outro lado, se concordarmos com Freud quando este afirma que o saber sobre a vida humana não é uma “Weltanschaung”, uma visão de mundo, uma descrição ou uma explicação, não podemos também negar em Ortega y Gasset uma preocupação com o “estranho”, o escondido, o velado, o esquecido e o que fica para sempre oculto, como nessa afirmação de que a vida se distingue de qualquer “chamada”, qualquer “profissão” ou profecia, qualquer “vocação”, e se instala sempre mais além do que pode o espírito representar e é sustentada na perplexidade e na angústia.

            Uma palavra, ainda, para o que Ortega y Gasset denomina “potencia de trabazón”, uma “tremenda” força de “implicação mútua entre Homem e Mundo” e que consiste “precisamente no que chamamos vida12-128.  Em Freud o termo “contextuação” ou interconexão (Zusammenhang) também dá notícias dessa “conjunção” que dentro da dinâmica deleuziana se situa como pulsação.  Algo parece situar-se dentro do sujeito ao mesmo tempo que dentro do mundo, no qual o próprio sujeito se encontra incluído e do que tenta sempre se ocupar.  Essa conjunção é o que lhe dá consistência e possibilita, no seu conhecimento (co-nascimento, co-gnecere, co-naître), a sua ex-sistência.  A existência do homem situada desde uma perspectiva que respeita (re-spectare), que vê o outro em uma segunda mirada, de “outro” ponto de vista, sempre oculto, esquecido, estranho e a ser des-coberto.   
 
A palavra hebraica “Metzavé”, que representa essa “conjugação”, interconexão, fala de um desejo, “Metza”, que é ao mesmo tempo um objetivo e um “conecto” e do sufixo “vê”, que se refere a uma ação.  O sujeito nasce, pois, de uma ação desejante – um afazer, diríamos com Ortega ou de uma nova ação (Neue Aktion), diríamos com Freud – que vem de uma conexão no e com o mundo em um momento; uma situação de conjunção.  Lacan traduz o termo freudiano (Zusammenhang) por “constelação no sentido dos astrólogos19-55.  Winnicott fala de um brilho no olhar – uma visão? – no nascedouro.  A poesia situa um “alumbramento” com Manuel Bandeira.  

O conhecimento está ligado a uma origem, um nascimento que é ao mesmo tempo uma “gnosia”, alguma fé que mesmo sendo localizada como laica pode nos levar a pensar em um saber ou em um sabor20-21, ou, ainda, em uma força ou energia potencial que ficou de fora da ciência psicanalítica.  Freud nos advertia várias vezes para o fato de que, para a composição da teoria psicanalítica, “muitos enigmas” que são relativos à hipnose foram abandonados.  Haveria algo da ordem do mítico e do sonho nessa conjunção, nessa “potencia de trabazón” e que deve ser trabalhado nas “travessias do fantasma”? O fantasma é essa invenção de “pertinência”, esse desejo de  história, esse “truque para gozar”, e que deve também passar pelo labor conjunto com os mitos, com os ritos e pelas peregrinações culturais, entendendo-se aqui cultura como o ponto de encontro onde qualquer redução clama por insistência, perdição e esperança.

            Não há, pois, nenhuma distância entre a força de sedução do mundo e as perguntas, a pro-cura do sujeito.  Ele quer, em sua curiosidade, perguntar, pedir, e, nessa gana de querer saber, constroi seus caminhos, seus ideais, seus ídolos.  Nas perguntas – e toda prece é uma pergunta sobre desígnios – ele ad-ora, podendo aí petrificar-se na medida em que seus monumentos (Denkmale) são os ídolos que ocuparam o lugar dos ideais a serem incorporados, a cada entrada em cena ou, então, encontrar-se na medida em que esse monumentos são ideias que estão aí para se des-fazerem, se descongelarem, encarnando-se, a cada incorporação, em um novo homem. 




Jorge de Campos Valadares
Psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ)
Professor e Doutor da FIOCRUZ
Rua Senador Simonsen n. 25 – apto. 302 - Jardim Botânico
Rio de Janeiro - RJ
CEP 22461-040
Tel.: (021)2246-2536



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1.     NERUDA, Pablo. “Veinte poemas de amor y una canción desesperada”. In: Poemas de Pablo Neruda Interpretados por el Autor. Buenos Aires, Producciones Fonográficas Dueuy – Del Priori.
2.     ROSA, João Guimarães. “Grandes sertões: veredas”. Rio de Janeiro, 2ª Ed., Nova Fronteira, 1986.
3.     FREUD, Sigmund. “Die Verneinung”. Londres, Imago Publishing, vol. XIV, 1948.
4.     GARCIA, Célio. “Anotações do Grupo Horda”. Rio de Janeiro, Clínica Social de Psicanálise, 1980.
5.     PRATA, Francisco Xavier Pina. “Dialética da razão vital”. Lisboa, Livraria Morais Editora, 1962.
6.     FREUD, Sigmund. “Die Zukunft einer Ilusion”. Londres, Imago Publishing, G.W. vol. XIV, 1948.
7.     ORTEGA Y GASSET, José. “Vitalidad, Alma, Espírito”. Obras Completas. Madrid, Ed. Revista Del Occidente, vol. II, 1948.
8.     WINNICOTT, D.W. ”Fear of Breakdown”. In: Rev. of Psycho-Analyses, 1974, 1:103.
9.     FREUD, Sigmund. “Zur einführung des Narzissmus”. Londres, Imago Publishing, vol. X, 1949.
10.  ______________ “Das Unbewusste”. Londres, Imago Publishing, vol. X, 1949.
11.  FREUD, Sigmund. “Unbehangen in der Kultur”. Londres, Imago Publishing, vol. XIV, 1948.
12.  ORTEGA Y GASSET, José. “Meditação da Técnica”. Rio de Janeiro, Livro Íbero-Americano, 1948.
13.  FREUD, Sigmund. “Unbehangen in der Kultur”. Londres, Imago Publishing, vol. XIV, 1948.
14.  MERLEAU-PONTY, Maurice. “Em torno do marxismo”. São Paulo, Col. Pensadores, Abril Cultural, 1948.
15.  ORTEGA Y GASSET, José. “Que es conocimiento?”. Madrid, Revista Del Occidente em Alianza Editorial, 1981.
16.  FREUD, Sigmund. “Die Traumdeutung”. Frankfurt, Fischer Taschenbuch Verlag, 1961.
______________ “Die psychogene Sehstörung in psychoanalytischer Auffassung”. Londres, Imago Publishing, 1948.                                                                   

Nenhum comentário:

Postar um comentário