Van Gogh

Van Gogh

Pesquisar este blog

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

A coleta de lixo domiciliar na cidade do Rio de Janeiro: um estudo de caso baseado na percepção do trabalhador




A coleta de lixo domiciliar na cidade do
Rio de Janeiro: um estudo de caso baseado
na percepção do trabalhador

Home garbage collecting in the city of
Rio de Janeiro: a case study discloses the sanitation
from the workers’ point of view


Marta Pimenta Velloso1
Jorge de Campos Valadares2
Elizabeth Moreira dos Santos3

Abstract This article discloses the sanitation workers’ point of view on specific topics such as health risks and unsafe conditions met during home garbage collecting process.  Located in Rio Comprido neighborhood, the chosen workplace unit was the east Cleaning Management District (Gerência de Limpeza Leste, LGL-3), branch of Rio’s Street Cleaning Municipal Company (COMLURB). The method employed in this survey consisted of tape recorded single interviews and video recording sanitation workers daily operations, with written notes and comments by the researchers.  Instead of being considered merely “garbage carriers”, the sanitation workers are now asking for the basic improvements in order to make this particular activity more suitable to meet the best of their human expectations.  Besides, the sanitation workers are claiming the company implementation of new services like full health coverage and professional training courses.  According to sanitation workers, the disregard and professional underrating shown both by the company and the general population are the main sources of concern.
Resumo Este artigo analisa, baseando-se na visão do trabalhador, as condições de risco e segurança encontradas no processo de trabalho da coleta de lixo domiciliar.  A unidade específica de estudo foi a Gerência de Limpeza Leste (LGL-3) da Companhia Municipal de Limpeza Urbana (COMLURB), situada no bairro do Rio Comprido.  O instrumento utilizado na pesquisa foi a entrevista individual e gravada, sendo enriquecida pela observação do pesquisador.  O trabalhador percebe que, para melhorar suas condições de trabalho, torna-se necessária uma adaptação do trabalho ao homem, ou seja, a não utilização de seu próprio corpo apenas como instrumento para  carregar o lixo.  Além disso, esses trabalhadores demandam a implantação de novos serviços na empresa, tais como serviços de atenção integral à saúde e cursos de treinamento para o trabalho.  Um dos grandes problemas identificados pelos trabalhadores é sua falta de valorização profissional, tanto pela empresa quanto pela população.

Key words: Workers’ Health; Occupational Health; Occupational Accidents; Accidents; Workplace
Palavras-chave: Saúde do Trabalhador; Saúde Ocupacional; Acidentes de Trabalho; Acidentes; Local de Trabalho


Introdução

               Como a palavra lixo representa o resíduo sólido desprezado pela população, os profissionais encarregados da coleta de tais resíduos são chamados genericamente de “lixeiros” ou “garis”1.  O núcleo simbólico depreciativo associado à denominação dada à referida ocupação se origina dos próprios lixeiros, de suas condições econômicas, sociais e de trabalho adversas, que dinamicamente interagem com a imagem da população sobre eles.
            Se por um lado há situações concretas de trabalho em que esses trabalhadores se veem obrigados a ter de lidar diariamente com uma realidade tão universalmente abjeta, por outro eles sequer recebem salários dignos, socialmente equitativos até mesmo com outras categorias pertencentes ao setor terciário no qual se inserem.  Assim, não existem quaisquer condições em que a negociação social de prestígio profissional possa superar ambas as fontes de “mal-estar” psíquico em relação à vida e à identidade profissional dos “lixeiros”.
               O processo de trabalho de coleta de lixo domiciliar é constituído por uma tecnologia precária, praticamente manual, na qual o corpo do trabalhador transforma-se em instrumento de carregar o lixo.
            A vivência concreta dessa situação, isto é, o identificar-se com um instrumento de transporte de dejetos, implica experiência de determinadas condições desagradáveis do estado psíquico, sobretudo na vida emocional dos sujeitos.  Para alguma mudança nessa realidade é necessária uma consciência aguda da precariedade humana, daquilo que é sempre falho, com o qual o sujeito deve enfrentar o “real”, o “natural”, ou seja, seu próprio corpo como fonte de vida e, ao mesmo tempo, como contínuo resto da atividade de viver, que retorna sempre insatisfeito.  Essa precariedade provém da supressão necessária de um sentimento oposto, daquilo que situaria o corpo e a vida como sempre “completos” e fonte inesgotável de gozo e que deve ser afastado para o aparecimento do “lugar do outro”, e que a psicanálise nomeou como recalcado.  A aceitação da falha, necessária para o processo da cultura, é sempre provisória e dura até a realização de algum prazer.  Antes do aparecimento de uma revolta, do acionamento do sistema motor ou do silêncio do re-sentido, um pensamento e uma ação modificadora devem ser viabilizados na direção de melhora em relação ao mal-estar.  Voltaremos ao tema.
               A coleta seletiva que separa o lixo reciclável (vidros, agulhas, latas, madeiras) do restante, além de evitar acidentes com cortes e ferimentos, pode contribuir para transformar a visão estigmatizante dessa profissão.  O lixo - visto como resíduo desprezado -, passa a ser considerado matéria-prima, podendo ser transformado e reutilizado pela população.
Essa solução de racionalidade positiva enfrenta o obstáculo das concepções societárias que dificilmente associam a imagem do lixo (objeto desprezado) como material que pode ser retransformado e reinserido em um novo ciclo produtivo, e raramente incorporam informações sobre a relação coleta de lixo e saúde do trabalhador.
É nesse contexto que nasce o presente estudo, o qual visa, através da percepção do trabalhador, registrar algumas de suas condições de segurança e riscos à saúde provenientes deste processo de trabalho.

Metodologia

O presente trabalho, realizado entre junho de 1994 e janeiro de 1995, envolveu a percepção do trabalhador enriquecida pela observação participante do pesquisador.  Como unidade de estudo escolheu-se o trabalhador da Gerência de Limpeza Urbana do Rio de Janeiro (COMLUMB).  A COMLURB é uma empresa municipal subordinada à Prefeitura, sendo responsável pela coleta, pelo transporte e pelo destino do lixo.
A COMLURB possui 26 gerências de limpeza localizadas em diversos bairros do município, cada uma delas sendo responsável por sua respectiva área de abrangência.  A empresa conta com um total de 1.400 coletores de lixo domiciliar.  Na gerência estudada, situada no bairro do Rio Comprido, havia 29 trabalhadores, mas por motivos operacionais foi possível entrevistar apenas 24 deles.  Assim, o grupo sob estudo foi composto por esses indivíduos, todos do sexo masculino, com idades entre 25 e 56 anos (média de 37 anos) e alfabetizados.  Esses trabalhadores possuíam vínculo empregatício com a empresa, sendo regidos pelo regime da CLT, e todos participaram voluntariamente da pesquisa.
            A entrevista semi-estruturada (Velloso, 1995) foi utilizada como instrumento de Coleta de Dados, abrangendo a percepção do trabalhador sobre as causas dos acidentes relacionados ao seu trabalho, sua satisfação no trabalho, além de sugestões para a melhoria das condições de trabalho.
            A entrevista foi individual e os dados obtidos foram gravados, sendo as falas dos trabalhadores interpretadas conforme estudo de caso descrito em Becker (1994), no qual o autor relata a análise de dados baseada na observação participante do pesquisador.

Causas de acidentes relacionados ao trabalho

               Os trabalhadores polarizam sua percepção das razões para se acidentarem.  De um lado, cerca de 1/3 dos trabalhadores identificam o processo de trabalho como responsável pelos agravos por eles sofridos em sua atividade, podendo aí se eximir até mesmo de sugestões.  De outro lado, se autoresponsabilizam por esses eventos, exigindo, em certas circunstâncias, uma perfeição, uma completeza imaginária.
            Constatou-se que o maior percentual de acidentes foi por eles atribuído às causas inerentes ao processo de trabalho, traduzidas como processo de trabalho em si (33% dos trabalhadores) e falta de medidas preventivas (equipamento de proteção individual e treinamento) (Tabela 1).  Somando-se a estes, aqueles trabalhadores identificam os acidentes como resultado da falta de treinamento para o serviço (4,2%) e acidentes devido ao processo de trabalho associado à falta de equipamentos de proteção individual (20,8%).  Verifica-se que 58,3% dos trabalhadores relacionam os acidentes ao processo de trabalho.

Tabela 1
Companhia Municipal de Limpeza Urbana do Rio de Janeiro - percepção dos 24 coletores de lixo domiciliar estudados em relação às principais causas atribuídas aos acidentes ocorridos durante o trabalho de coleta. Julho/1994.

CAUSAS                                                                                                                       n                         %
Inerentes ao processo de trabalho                                                                        8                 33,3
Devido ao processo de trabalho e falta de EPI                                                    5                 20,8
Descuido do trabalhador                                                                                         3                 12,5
Ritmo acelerado do trabalhador                                                                            2                   8,3
Ingestão de bebidas alcoólicas                                                                               2                   8,3
Falta de treinamento para o serviço                                                                     1                   4,2
Inerentes ao processo de trabalho e ao descuido do trabalhador                 1                   4,2
Descuido do trabalhador e bebida                                                                        1                   4,2
Descuido do trabalhador e falta de EPI                                                               1                   4,2
TOTAL                                                                                                                      24               100,0            



               Concomitantemente, parece evidente que o próprio trabalhador se autoidentifica como responsável pelos acidentes que sofre.  Agregando-se as categorias: descuido do trabalhador (12,5%), ritmo acelerado do trabalhador (8,3%), ingestão de bebidas alcoólicas (8,3%), descuido do trabalhador e bebida (4,2%), apura-se que 33,3% dos trabalhadores se julgam responsáveis pelos acidentes.  É interessante notar que 8,4% dos trabalhadores dividem sua responsabilidade com a empresa na percepção de causalidade dos acidentes.  Desses, 4,2% consideram que os acidentes ocorrem devido ao processo de trabalho e 4,2% devido à falta de EPI (Equipamento de Proteção Individual).
            Essa polarização fica claramente evidenciada através da fala do trabalhador:

               “(...) O latão pesado de 200 litros, que a COMLURB já proibiu, às vezes força e tem que ter quatro pessoas ‘pra’ levantar.  A falta de segurança, porque viajamos pendurados com risco de cair, e esse negócio de trabalhar em morro, chão esburacado, com peso de tudo quanto é espécie (vidro, lata que corta e machuca).  A falta de segurança é atribuída à própria Companhia, porque deveria ter um meio de trabalho onde o trabalhador não colocasse totalmente o corpo como um objeto de carregar o lixo: usasse uma coisa fora do corpo. (...)”

            “(...) Por causa do caminhão, às vezes uma luva furada, uma bota soltando a sola.  Você nunca está esperando que aquele furinho da luva vai pegar uma borda de latão.  Você pede a Deus que não aconteça.  Uma vez, em Botafogo, o caminhão passou por cima da cabeça de um colega.  Ele vinha andando atrás do caminhão e escorregou.  O caminhão passou em cima da cabeça dele...”
A culpabilização de si próprio também é explicitada claramente nos depoimentos dos trabalhadores:

“(...) O que acontece mais com certos colegas é falta de atenção, porque se eles tiverem atenção muitos acidentes podem ser evitados.  Eu tenho quatorze anos de companhia e nunca sofri um acidente por descuido de minha parte.  O primeiro alerta ‘pro’ próximo: tem que pegar a bolsa com atenção.  As pessoas quebram um vidro, botam na bolsa de plástico, e fura a bolsa.  Desde o momento que fura, bate na perna.(...)”

“(...) Eu nunca fiquei inseguro, trabalhei até correndo.  O que leva as pessoas a se acidentarem é a pessoa ficar descuidada.  O serviço é perigoso por causa do caminhão, tem que estar com atenção. (...)”

“(...) Falta de atenção do cara.  A gente, que trabalha na rua, tem que ter muita atenção. (...)”

Reitera-se que essa culpabilização é poucas vezes absoluta.  O trabalhador relativiza, “o serviço é perigoso”, deixando perceber que tem clareza das condições precárias de seu trabalho.

“(...) Muito acidente, o que causa é falta de atenção do trabalhador, eu passei a observar isso depois que fiz um curso no SENAI.  Eu trabalho em morro, com o carro vazando óleo, o lugar para você segurar é cheio de óleo. (...)”

Da mesma forma, nesse processo de relativização, o trabalhador se localiza na ansiedade originada pelo trabalho, na desestruturação de suas relações psico-afetivas com seus colegas de trabalho e na ansiedade gerada pela sua luta de sobrevivência e associações com seus problemas.

“(...) Muito nervosismo dentro do serviço.  A gente sai de casa com um pensamento, mas quando a gente sobe no caminhão modifica tudo.  O cara fica apreensivo porque está trabalhando de tênis e muita gente falando com ele. O barulho atrapalha, o psicológico da gente fica abalado e aí vem a insegurança da gente ali.   A cabine é para o motorista, porque tem diferença do motorista para o gari, tem a discriminação e muitos deles se acham donos daquela cabine.  Quando está sol ou quando está chovendo, o gari vai atrás do caminhão para evitar conflito com o motorista, mesmo que ele ofereça a gente não vai, porque nós estamos sujos e ele, por estar “limpinho”, acha que a gente não devia estar ali. (...)”

A interação entre as características do processo de trabalho e as condições específicas do ambiente, sejam elas variações de tempo ou condições referentes à topografia da cidade do Rio de Janeiro, também estão claramente identificadas pelo trabalhador como desencadeadoras de acidente.

“... Em tempo de chuva, o estribo fica escorregando.  Acho que devia ter um lugar para o gari viajar dentro.  O carro particular tem uma parte no meio para o gari sentar quando vai embora.  Só trabalha na traseira quando está coletando o lixo, nenhum carro da COMLURB tem isso. (...)”

            “... A gente trabalha no sol, na chuva e não pode parar.  O corpo da gente sente à beça a diferença... (...)”

Esta desestruturação e o sofrimento mental do trabalhador o fazem duplamente vulnerável.  De um lado, a consciência do risco no trabalho, a impossibilidade de romper a precariedade das interações trabalho e ambiente em que a sua própria “sujeira” é fator decisivo.  Do outro, a necessidade de descarregar frustrações e a agressividade podem induzir o trabalhador a recorrer a bebidas alcoólicas como forma de aliviar a tensão interna.  Há uma dupla vulnerabilidade porque se trata de um alívio arriscado, agravante da culpa.

“... Os acidentes estão quase todos envolvidos com bebida.  O trabalho é feito na rua.  Se o cara fizer o trabalho conforme deve ser feito (devagar, botar atenção no serviço) não acontece nada. (...)”

“... Por causa do próprio trabalho ‘tá’ certo. Mas acontece muitos acidentes com nós que trabalha na rua porque cada um gosta de tomar um “gorozinho”, às vezes o cara toma “um pouquinho”  demais, aí já não é problema da Companhia, já é problema do trabalhador. (...)”


Mudanças capazes de melhorar as condições de trabalho

               Coerentemente com a racionalidade que apoia a percepção de causas dos acidentes, foi unânime entre os entrevistados a resposta de que a melhoria das condições de trabalho só aconteceria a partir da própria empresa.  Esta, segundo eles, não estaria propiciando condições adequadas de trabalho.   Na fala dos entrevistados evidenciou-se que, se houve aprimoramento tecnológico e operacional, estes não se fizeram acompanhar de uma melhora nas condições de trabalho: contratação de carros de empresa particular, mas salários atrasados: usina de reciclagem, mas manutenção precária dos veículos coletores de lixo.

            O trabalhador percebe que, apesar do investimento da empresa em desenvolvimento tecnológico e operacional, seus instrumentos de trabalho estão em processo de deterioração.

            “... A COMLURB tem tudo para ser uma ótima Companhia.  O lixo é muito rico, é uma Companhia que nunca vai entrar na falência, entra se os outros quiserem.  Porque o lixo nunca acaba e a matéria-prima dela é o lixo.  Ainda mais agora com essas Usinas que eles criaram e que estão reciclando direto e a frota da Companhia está no estado que está.  Tem carro aí que dá pena, porque não tem manutenção. (...)”

               As empresas particulares contratadas pela COMLURB (para realizar a coleta do lixo em alguns bairros da cidade) são identificadas pelo trabalhador como responsáveis pelos efeitos prejudiciais sobre suas condições de trabalho, tais como o atraso no pagamento dos salários e a situação precária  dos veículos coletores de lixo.

“... Esse prefeito não quer botar carro novo para trabalhar.  Não tem carro, ele inventou esse negócio de empresa particular e esses carros que estão pagando uma fortuna e a gente recebe dia 7, porque tem que pagar as duas empresas, então fica feio o negócio.  Nós não temos carro, está tudo quebrado, novo é a casca, mas, por dentro(...)”

            Os trabalhadores percebem, além da necessidade de medidas preventivas, a necessidade de mudanças relacionadas à adaptação do trabalho ao homem.

“... Sugestões? A melhor coisa que eles tinham que fazer é dar material que a gente precisa para trabalhar.  A roupa, o sapato, a luva e a capa.  Além desses a gente não pode mais usar equipamento nenhum, por causa dos movimentos que a gente faz.  Eles não dão capa para a gente trabalhar, se estiver chovendo a gente trabalha embaixo de chuva. (...)”

“... Não pegar desses latões grandões (200 litros) e que não socassem bastante o lixo, para não ficar tão pesado, ainda mais quando chove ele enche d’água e fica mais pesado. (...)”

O grupo de trabalhadores evidencia a necessidade de medidas preventivas especiais e da existência de um serviço de atenção à saúde do trabalhador, que contemple não só a atenção médica em geral como também treinamento em primeiros socorros relacionados à exposição ao risco.  O trabalhador percebe que os cuidados da empresa estão voltados somente à limpeza, negligenciando sua saúde.

“... Equipamento, materiais de forma adequada para o nosso uso.  Eu trabalho na coleta hospitalar, tem que ter uma roupa especial; luva, porque a gente entra em certos hospitais que existe muito tipo de infecção.  Por isso estamos tentando para ver se consegue, algum dia, alguém para zelar pela gente.  Até agora, trabalhamos com uniforme comum e chega em casa tem que separar aquela roupa.  A luva fica separada lá e a roupa a gente leva para lavar em casa.  Minha companheira já furou até o dedo num grampo que estava dentro da minha roupa. (...)”
                   
“... Assistência médica melhor para os funcionários, se a gente não tiver bem de saúde não vai adiantar a gente fazer um certo tipo de esforço, que a gente a não vai conseguir.  Tem muito colega meu que trabalha na COMLURB que não aguenta esse tipo de serviço de coleta e eles continuam aí. (...)”

“... Primeiros socorros, mais conhecimento ao gari, o cara só sabe que vai pegar o lixo.  Tem gente que trabalha com lixo contaminado. (...)
Durante as observações do processo de trabalho, verificou-se que os trabalhadores nem sempre trajavam o uniforme completo, ou seja, apresentavam-se sem botas, sem luvas, sem boné, com calça e camisa em estados precários.  Na entrevista, alguns trabalhadores alegaram que o uso frequente das luvas causava dermatite de contato, além de dificultar o serviço devido à perda de tato.
Outro ponto enfatizado pelo trabalhador é a sua falta de participação no poder decisório da empresa com relação ao seu trabalho.  Simultaneamente, as falas refletem o sentimento de desamparo do trabalhador em relação aos seus direitos no âmbito da empresa.
“... A firma tinha que ouvir mais a gente sobre os problemas que acontecem na rua.  Eles só punem a gente, nunca conversam para saber a nossa razão.  ‘Tão sempre dando razão à população e não escutam a gente.  Poxa! Eu queria estar trabalhando para alguém que se preocupa com o meu serviço, sabendo que estou na rua, estou correndo risco lá.  Um dia o caminhão estava ruim e eu não consegui falar pelo telefone porque estava ocupado, quem atendeu foi a secretária dele e não deu o recado.  Eles só querem cobrar de você.  Está tudo ‘certinho’, está tudo bom.  Eu não me lembro de alguém elogiar alguém no trabalho.  Me lembro, sim, de elogiarem uma guarnição lá na Gávea.  Na COMLURB eles não elogiam, a gente é igual a cachorro. (...)”

Satisfação no trabalho

Segundo as falas dos coletores de lixo, tornou-se possível categorizar dois grupos de trabalhadores: o primeiro relacionado à categoria dos que se dizem satisfeitos (75%) e o segundo referente àqueles que se sentem insatisfeitos (25%).
A categoria de trabalhadores que se diz “satisfeita” é bastante questionável, já que a maioria desses mostrou-se ressentida com a empresa e/ou com a discriminação da população diante de seu trabalho.  Além disso, a minoria “totalmente” satisfeita respondeu às perguntas sem entusiasmo e com certo temor.
Os depoimentos obtidos tornam evidente que a categoria dos trabalhadores que se dizem “satisfeitos” valoriza seu trabalho porque o mesmo representa sua sobrevivência.
“... Sinto satisfeito, porque o que tenho é pelo trabalho.  Minha casa, estou construindo outra por cima, graças a Deus. (...)”

“... Fui criado na roça e não tive estudo, para mim é um bom trabalho. (...)”

Apesar de “satisfeitos”, essa categoria de trabalhadores ressente-se da discriminação da população em relação a seu trabalho.

“... Eles discriminam, eles olham pro gari como eles olham um ‘porco’.  Eles não sabem que o gari é um homem ou uma mulher igual a eles. (...)”

“... Uma vez um vizinho meu que passava na minha porta e bebia na minha barraca me viu trabalhando num carro, eu falei com ele e ele não respondeu. (...)”

“... As pessoas têm nojo da gente, acham que a gente tem uma doença contagiosa. (...)”

“... A gente entra no ônibus, o pessoal se afasta da gente. (...)”

A proximidade com o lixo e com o lixeiro, que é imediatamente associado ao lixo, passa a ser uma situação indesejável.  A identificação se refere a proximidades que são denegadas.  A posição ereta afastou o homem dos odores das fezes e da urina, por onde este se orientava no território, em busca de contatos com parceiros, e esse afastamento o levou ao que Freud denominou de recalcamento orgânico.  O lixo permanece na vida emocional do sujeito como algo estranho (Freud, 1918) e, por isso, inquietante, inútil ou daninho e, assim sendo, deve ser excluído (Freud, 1925).  O lixo, nessa condição, lembra tudo o que é “resto” e, com o percurso de seu destino, acompanhamos inconscientemente o destino do nosso próprio corpo, quer como imagem de fragmentação, quer como representação de decomposição final.

Esses trabalhadores ressentem-se da desvalorização da empresa, tanto através da falta de participação no poder de decisão em relação a seu trabalho quanto mediante a negligência da mesma no que diz respeito à sua saúde, ao baixo salário e à falta de incentivos e/ou gratificação pessoal que recebem para desempenhar um serviço altamente penoso.

“... Muito gari sabe mais que um chefe, do que um fiscal.  Às vezes ele tem uma sugestão melhor, mas não é válido. (...)”

“... A Companhia acha que está tudo bom, ela quer a cidade limpa.  O esforço que a gente faz, o tempo que a gente vai gastar, a barra que a gente vai ter que correr, para ela tanto faz. (...)”

“... Eu saio para a rua, faço a minha tarefa, acabo a minha, ajudo a do meu colega e não tenho uma compensação. (...)”

“... A pessoa para eles só tem valor se ‘tiver’ ali, na função.  Agora, se depender da gente sofrer um acidente ou ter que afastar do serviço, eles parecem que abandonam a pessoa de uma vez por todas. (...)”

“... Me lembro que a gente fez uma greve aí e a cidade ficou suja à beça.  O prefeito deu um cansaço na gente e gastando o dinheiro em bobeira, a Lagoa Rodrigo de Freitas já é área de lazer. (...)”

Essa categoria, além de ressentida com a desvalorização pela empresa, sentiu a  insegurança devido à contratação de quatro empresas particulares (Cavo, Enterpa, SPL e FIAT) pela COMLURB, por ocasião da greve dos coletores de lixo  em abril de 1994.


“... Eu e meus colegas nos dedicamos ao trabalho, mas não sabemos se estamos agradando. Eles contrataram esses carros particulares e falaram que esses caras estão fazendo um bom serviço. (...)”






Discussão

O processo de trabalho não é visto isolado do ambiente onde o trabalho é desenvolvido.  Sistematicamente o trabalhador integra o processo de trabalho às condições específicas da cidade do Rio de Janeiro, tais como a topografia, o tráfego e a própria violência do cotidiano da cidade.
 Segundo Cohn et  al (1985) e Faleiros (1992), o Estado atribui como principais causas dos acidentes de trabalho aquelas referentes aos atos inseguros do trabalhador, e as campanhas destinadas à prevenção de acidentes são dirigidas somente aos trabalhadores, excluindo-se os patrões.  No grupo estudado a autoculpabilização é também um dos fatores identificados como causadores de acidentes.  Pode-se então assumir que a culpa sobre o ato inseguro, transmitida pelo Estado através de seus órgãos oficiais, induz o trabalhador a uma visão fragmentada das causas referentes aos acidentes ocorridos.
Isto pode ser entendido considerando a orientação fornecida pela COMLURB aos coletores de lixo, quando a chefia enfatiza a necessidade de usar equipamentos de proteção individual (EPIS) e de não ingerir bebidas alcoólicas a fim de evitar acidentes.  Essas recomendações representam quase uma ameaça ao trabalhador, dada a natureza enfática de sua presença nos treinamentos e folhetos de orientação da empresa, enquanto outras recomendações de igual ou maior importância nem sempre são transmitidas, como por exemplo: medidas preventivas contra doenças infecciosas (dengue, febre amarela, tétano, hepatite, cólera), posturas adequadas para levantar e transportar pesos, cuidados com materiais que oferecem risco (latas, garrafas, vidro, seringas, substâncias inflamáveis) e cuidados com infecções (de pele, dos olhos, dos aparelhos digestório e respiratório).
Vários autores, entre eles Pereira (1978), Robazzi (1984), Ilário (1989) e Betancourt (1993) relatam a problemáticas dos coletores de lixo consumirem álccol durante o serviço.  A recomendação frequente da COMLURB aos trabalhadores para “não ingerirem bebidas alcoólicas durante o serviço” e a autoculpabilização desses trabalhadores pelos acidentes atribuídos ao consumo das mesmas sugere que os coletores de lixo estudados consomem álcool com frequência, inclusive durante sua jornada de trabalho.  A esses trabalhadores não é permitido nenhum espaço, seja decisório, seja participativo e terapêutico, a fim de elaborarem a ambiguidade que vivenciam.
  O sentimento de impotência do trabalhador para transformar suas condições de vida e a insatisfação referente ao seu trabalho podem também estar relacionados à referida ingestão de álcool.  Tais profissionais se dizem se dizem “satisfeitos” com a profissão pelo fato de a mesma representar sua sobrevivência.  No entanto, a insatisfação dessa categoria pode ser evidenciada, quer através da sociedade que lhe confere a identidade de “porco” e de “infectado”, capaz de “contagiar”, quer através da própria empresa.  Esta, deseja ver a cidade limpa mas negligencia não só os riscos físicos, químicos e biológicos aos quais o trabalhador fica exposto como também a sobrecarga psíquica a que estão sujeitos pela sua identidade social.
Os trabalhadores estudados percebem, como mudanças capazes para a melhoria de suas condições de trabalho, diversos fatores, tais como: distribuição de EPIS (conforme a demanda), treinamento, atenção médica integral, manutenção de seus instrumentos de trabalho, adaptação do trabalho ao homem e sua participação junto à empresa em decisões relacionadas ao trabalho.  Merece destaque fato de vários deles resistirem, mesmo quando disponíveis, ao uso dos equipamentos de proteção.  
            Uma pesquisa posterior seria conveniente para determinar as possíveis associações feitas pelos sujeitos dessa necessidade de Toto e, portanto, de contato com o lixo e a necessidade inconsciente de punição ligada à culpabilidade, mas, antes de tudo, as relações desses fatos e a realidade social como mantenedora de uma situação de “superego social” (Freud, 1930), que impede “consciência” e a conscientização transformadora.  O superego é uma instância interna e inconsciente que na re-apresentação pode ser questionado, dependendo do ponto de vista do sujeito (Valadares, 1994).
            Seria conveniente a introdução de medidas práticas, objetivas e inadiáveis como uma coleta seletiva que separe o lixo reciclável (vidro, lata, madeira, agulha) para evitar acidentes como cortes e ferimentos, dado que o processo de trabalho se estrutura através de uma tecnologia primária, praticamente manual, o que expõe o trabalhador a doenças e acidentes relacionados ao esforço excessivo exigido pela demanda ocupacional.
Além das medidas de modificação de ambiente físico e de instrumentos de trabalhos, poderiam ser considerados a possibilidade de criação e incentivo a grupos contínuos de encontro de trabalhadores, sem nenhuma obrigação institucional, com a opção de encaminhar, esporadicamente, alguma recomendação ou reivindicação às empresas e à Prefeitura.  Esses grupos, formados em cada unidade de coleta e tratamento, e que poderiam se reunir quinzenalmente no horário de trabalho, deveriam escolher internamente um coordenador e um relator.  Um coordenador escolhido “de fora” institucionalizaria o processo e impediria movimentos mais ligados à imaginarização, sempre acolhida no pequeno grupo (Valadares, 1994).  A dita prática foi a causa do fracasso de muitas medidas ligadas às comissões de proteção contra acidentes de trabalho.  Esse tipo de agrupamento que acolhe toda a sorte de manifestação, sem marginalizar, por não estar submetido à hierarquia, tem mais oportunidade de encaminhar sugestões sem o impedimento de uma censura externa que aciona mecanismos superegoístas sempre internos aos sujeitos.  Os encontros podem estar vinculados a alguma atividade de lazer: artesanato, ou cursos de treinamento em atividades artísticas, técnica, esportivas etc., sem ligação necessária com o trabalho ou, ainda, outra oportunidade graciosamente oferecida ao trabalhador.  Poder-se-ia acompanhar o desenvolvimento de tal atividade com uma pesquisa sobre melhoria na incidência de doenças, acidentes, satisfação no trabalho, acesso a melhor condição de cidadania, a qual é menos valorizada pelos indivíduos do que a condição do sujeito. 
            Pensamos, assim, que algum trabalho deve ser desenvolvido no sentido de produzir, entre trabalhadores, um movimento em direção à autonomia, somente conseguido com um encaminhamento de encomendas sociais, isto é, com o deslocamento contínuo dos ideais e, portanto, das lideranças.  A procura de autonomia é uma das figuras do real, somente manifestada nos “restos”, naquilo que ainda não foi elaborado pelo homem.

Referências

  • 1 No início do século, os serviços de limpeza urbana foram entregues à iniciativa privada, quando então os “Irmãos Garys” assumiram a Companhia Industrial do Rio de Janeiro, por autorização do Governo Municipal, para desempenhar os serviços  de coleta, transporte e destino do lixo.  Desde então, os trabalhadores de coleta de lixo passaram a ser denominados pelo nome genérico de seus patrões, “garis”.

  • BECKER, HS. 1994. Métodos em pesquisa e ciências sociais. HUITEC, São Paulo. 178 p.
  • BETANCOURT, OF. 1993. La salud ocupacional y los trabajadores de saneamiento ambiental. Salud y trabajo. 13:3-9.
  • COHN, A., KARSCH, U.S., HIRANO , S.  & SATI, AK.  1995. Acidente do trabalho: uma forma de violência. Brasiliense, São Paulo. 158 p.
  • FALEIROS, P.V.O. 1992. Trabalho da política: saúde e segurança dos trabalhadores. Cortez, São Paulo. 312 p.
  • FREUD, S. 1974. Mal estar na civilização. (O.C.) 21:75-173. 1948. “Das Umbehagen in der Kultur” (1930). G.W. 14:419-506.
  •  FREUD, S. 1976. A negativa. (O.C.) 19:290-300. 1948. “Die Verneinung” (1925) G.W. 13:9-15.
  • ILÁRIO, E. 1989. Estudo de morbidade em coletores de lixo de um grande centro urbano. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional 17(66):7-13.
  • PEREIRA, A.S.O. Acidente de trabalho em limpeza urbana. Vol. 1. COMLURB, Rio de Janeiro, 38 p.  
  • ROBAZZI, M.L.C.C. 1984. Estudo das condições de vida, trabalho e riscos ocupacionais a que estão sujeitos os coletores de lixo da cidade de Ribeirão Preto – Estado de São Paulo. Dissertação de Mestrado. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, USP, Ribeirão Preto. 120 p.
  • VALADARES, J. de C. 1994. Espaço ambiente e situação do sujeito. Tese de Doutorado. Escola Nacional de Saúde Pública, Fiocruz, Rio de Janeiro. 158 p.
  • VELLOSO, M.P. 1995. Processo de trabalho da coleta de lixo domiciliar da cidade do Rio de Janeiro: percepção e vivência dos trabalhadores. Dissertação de Mestrado. Escola Nacional de Saúde Pública, Fiocruz, Rio de Janeiro. 125 p.

Nenhum comentário:

Postar um comentário