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quarta-feira, 6 de agosto de 2014

AMBIENTE E COMPORTAMENTO: OS RESTOS DA ATIVIDADE HUMANA E O "MAL-ESTAR NA CULTURA"



AMBIENTE E COMPORTAMENTO: OS RESTOS DA ATIVIDADE HUMANA E O “MAL-ESTAR NA CULTURA”

Jorge de Campos Valadares

INTRODUÇÃO

               Sabemos que o trabalho da cultura é contínuo e implica uma contínua modificação da natureza.  Nesta faina, a cultura se debruça sobre as ‘coisas’.  Digo assim, ‘coisas’ entre aspas unitárias porque, para os homens, o que lhes é externo somente existe se for lugar de sonho, espaço de invenções, como coisas, enfim.  Essas coisas são ditas concretas.  Apesar disso a atividade da cultura as elabora, trabalha até transformá-las em restos, em memória, em reminiscências, em sinais, em rastros de recordação.

               Rastros, pistas, esse é o destino mais nobre para as ‘coisas’.  É entre a recordação e o convívio que se cria o espaço da habitação humana.  Recordação que sempre frequentará espaços de intimidade, indizíveis, e convívio que sempre convocará algum outro a mais, cuja ausência será sempre vivida como uma perda e que pode nomear o rastro como lixo ou como luxo.  Como este outro do convivo se refere ao espaço da memória que é, agora, convocado, criamos os espaços como ‘soluções’ possíveis, com as coisas, os restos, os rastros de que dispomos.  As ‘soluções’ ditas concretas dependem sempre do que a memória permite e da qualidade do convívio.  Há as coisas que nós mesmos afastamos de nossas recordações e há impossibilidades de frequentação de alguns espaços de encontro.   

Gostaria de inventar uma outra linguagem, não sei bem qual, mas que fosse minha, porque aquilo de que quero falar vem de um amontoado de coisas que no seu todo foi somente por mim vivido, e que pressinto conter algo que merece ser destacado, contornado e rejuntado de uma certa maneira peculiar.  Dessa maneira, eu encontraria um lugar ao lado do leitor na medida em que apontaria alguma coisa que poderia ser acompanhada e, então, não seríamos pedaços soltos.  Estaríamos, mesmo que por um momento, juntos apesar da distância, escapando de algo inominável que é justamente para o que quero apontar.  E não poderia fazê-lo sem algum momento de encontro.  Encontro como o encontro humano: precário, na distância que a diferença das experiências coloca como des-confiança.

               O leitor já pode sentir que aquilo de que quero falar fica mais próximo de uma produção que liberta do que da ciência que é o que ata o homem a instrumentos.  Mais perto da poiesis, do poema, da arte, portanto.  Nada é exato e deve haver tropeços.  O espaço do psicológico, essa habitação a que me referia, se constrói com o edifício da arte.  Trata-se de um lugar, uma morada que está para além do corpo e da natureza que, todavia, atravessa esse corpo, e que jamais será habitado sem o seu contorno, os seus limites, sua pele tão infinitamente profunda, sem o sensível que é o desenhado como um sítio do genuinamente humano.  A instância da letra, sem a qual não há limites humanos, tem somente a utilidade para o humano, enquanto esse humano possui, na medida em que ele contém esse desenhado.  Então, vejamos.




O CORPO E SEUS CONTORNOS, SUA ENCORPAÇÃO

               Tudo o que é resto, tudo o que é sobra na produção humana se relaciona ao corpo e ao seu conforto.  Assim, o corpo humano, tomado pela medicina tradicional como um todo orgânico, homeostático, com uma saúde bem delineável é, de fato, para a cultura, como um todo, um campo de transformações, de produção, desequilíbrios e tensões, de sinais e enigmas sempre cambiantes.  Esses sinais e enigmas relacionados ao corpo vão desde as “aparências” – suas vestimentas e seus sintomas – até o amor, aquilo que liga e regenera tudo, ou até seu produto primeiro, as fezes, o derradeiro, o seu próprio cadáver.  O corpo é um lugar de lutas e lutos, de produção e perdas, e isso constitui o viver.  Não há vida sem corpo.  O corpo é um espelho da alma, e este espelho se espalha em tudo o que lhe é relacionado, o que constitui a vida e, por isso, não há corpo sem vida.  Sem vida ele é apenas coisa, resto.  A vida humana constitui-se como uma forma, um vazio, um lugar de criação, ou melhor, de invenções.

               O corpo é, assim, a fonte e o portador, do início ao fim de nossas vidas, de uma série de sintomas e imagens que inventamos, que criamos, e tudo o que criamos nasce do nosso corpo e seus sentidos.  O nosso sentimento de amor próprio, umbigo daquilo que se convencionou chamar de Eu, é fundado em uma capacidade de con-sentimento conosco mesmos.  Nasce de um núcleo de prazer com o si mesmo, de uma “encorpação”, uma incorporação que, na medida em que nos permitimos vivê-la, vamos vivendo e fundamos a autoestima, uma liberdade de nos avaliar e nos recompor, por nossos próprios parâmetros, o que será, para nós, o bem-estar, o bem viver, que estão sempre relacionados ao corporal.

               As imagens sempre cambiantes que saltam de nosso corpo em nossas obras são filhas do sonho que sonhamos para a infindável reavaliação e retomada de nossas vidas.  À energia de nosso corpo colamos histórias, representações que inventamos para nossas caminhadas, o que constitui nossos sonhos, da mesma maneira que, com o auxílio de saberes da ciência, à energia de uma catarata, o homem colou as imagens que estão em nossos vídeos, em nossas televisões.  São essas imagens, essas representações de vida que, partindo do corpo, nos lançam no mundo.  Isso porque não saímos de nós mesmos se nos reduzimos a um “eu corpo” (Masud Kahn, 1974:152), no qual apenas reproduzimos, personificamos ou incorporamos (Freud, 1976) outras pessoas, que passam a constituir como ideais a seguir, com os quais nos identificamos.  É, pois, saltando do corpo vivido como fonte de sinais enigmas e inventando novos sentimentos – embora sempre presos a ele e seu início – que podemos saltar no mundo.  O que criamos passa a ficar no mundo com a nossa marca, com a marca de nossa presença ou, então, de nossa ausência, mas sempre nossa marca.  Essa marca, sobras, saltos e sobressaltos do corpo, é aquilo que revela nossa vida – sem a qual somos apenas corpo, coisa.

               O lixo é a marca de nossa história, o sinal de uma presença que o corpo deixou de lado, refugou, que se transforma, assim, em testemunho, em signo de nossa passagem.  E isso fazemos com tudo aquilo que inventamos e substituímos na busca de conforto para nosso corpo e para o corpo de nosso espaço e na tarefa de “ek-sistir”, existir fora de nós mesmos, de nosso ensimesmamento.  E assim fazemos até o dia em que não é mais possível nada inventar, e o nosso corpo, como cadáver ou como coisa que não marca, transformar-se-á também em apenas um rastro de nossa passagem.  

               Para o corpo, ainda assim, construiremos lápides, túmulos e outras artes funerárias que atestarão nossa passagem.  É nesse sentido que Aparício et al. (1991) afirmam que toda arte é uma arte funerária.  Como o caramujo que vai deixando parte da substância que fabrica por onde passa, vamos também deixando nossos restos que marcam nossos caminhos.  E, seja papel, lata, plástico, carro velho, cisco ou uma letra qualquer, ali fica um pedaço nosso que não podemos aproveitar e que lembrará nossos excessos, o que não cabia mais em nós.

               Se o lixo guarda uma relação explícita com a morte pelas doenças que pode carrear, como nos lembra Marta Velloso (1996), traz íntima e recôndita uma outra relação com ela, pois, uma vez como sobra, abandona o corpo e tudo aquilo que lhe pode ser útil, que pode transformá-lo em história, devolvendo-lhe outra vida, mas à custa da própria existência.

               O lixo, para a psicanálise, é imagem desse lugar temido que transforma o homem em depoimento, em testemunho de forma de viver e, mais ainda, aos poucos, custa-lhe a própria vida, pois o seu corpo será , também, o único traste que lhe sobra para ser apresentado como testemunho final de presença no mundo.  O lixo nos lembra, contínua, insistente e incomodamente, pois, a nossa própria morte.  Algo nos falha no viver, no desfrute das graças do mundo, e essa falha está em nosso caminho marcado naquilo que sobra, que não conseguimos aproveitar, e nos diz do nosso “mal-estar” e do “mal-estar” presente na cultura.  Freud insiste nessa frustração (Versagung), presa a nosso destino pelas peias da evolução técnica. 



               A FRAGMENTAÇÃO, O DESPEDAÇAMENTO E AS SOBRAS DA EXISTÊNCIA

               Mas a morte que é realmente temida pelo psiquismo, pelo mundo emocional, é a morte da ‘alma’.  A alma, a ‘anima’ é o sopro de vida através do qual significamos para o outro (falamos em alma não no sentido espiritual ou teológico do termo, mas no sentido vulgar, como quando se diz: ‘fulano tem uma boa alma’).  A morte existe, então, para o homem, quando perdemos o sentido , deixamos de ter significação para nossos pares.  A morte realmente temida é a loucura.  É o despedaçamento, a fragmentação e a indiferenciação com as coisas do mundo.  E quando não nos veem com o direito de “ek-sistir”, de sermos algo além de resto deixado em um canto, de lixo, de coisa, instrumento, assim como o louco passou a ser apenas o instrumento do existir de uma certa psiquiatria e sua farmacologia.  Seríamos assim corpos em andanças, perambulantes, perdidos, pulverizados em rotas e rotinas, e que, por isso, deixam história apenas como marcas de repetição do mesmo.  Sem casa, o corpo apenas pode ‘ter’ cansaço, ou stress e, como se diz de qualquer instrumento exaustivamente usado e, então, deve ser abandonado em alguma vala comum. 

               Os fragmentos que vamos deixando com nossa passagem – agora, os próprios depoimentos que imprimimos como fruto de nosso trabalho – estão ficando banais e, se devemos com blood, sweat and tears escrever as páginas da cultura, esta nos exige, cada vez mais, maior quantidade desses preciosos restos que vamos deixando com a nossa produção.  Essa reflexão é de central importância na medida em que é na atividade com os resíduos de nossa atividade que podemos ver mais claramente a vida que vivemos.

               James Gardner, em seu intrigante livro Cultura ou lixo, nos conta como a sociedade está exigindo dos artistas – mas podemos estender a todos nós essa afirmação – literalmente o próprio sangue.  É o caso do artista plástico Chris Burden que, depois de muitas performances no show intitulado Transfixed, deixou-se crucificar na traseira de um Volkswagen (Gardner, 1996).

               Sabemos que os artistas têm um irresistível chamado para trazer ao mundo uma visão ou uma representação de sua época.  É uma forma humana de elevação da vida, do sentimento e pelo sentimento do mundo e que transforma os restos humanos em amor à humanidade.  Nesse sentido, a arte é como a religião que administra uma outra vida para o homem.  É ainda James Gardner que nos diz:

Quase todos frequentam o museu pelo menos pelos mesmos motivos que seus antepassados frequentavam a igreja: em busca de consolo, liderança, renovação espiritual.  Faz bem às almas, lhes garante um adiamento à volta ao mundo dos dias úteis, e lhes dá acesso a um reino de certa forma mais nobre, mais sublime, que aquele em que vivem.  (Gardner, 1996:31)


               Que esse momento de elevação ou êxtase é extraído de restos, ou do próprio lixo, não temos mais dúvidas.  O êxtase deve ser apreendido e os museus exibem restos das performances, como ganchos, correntes, cordas, roupas usadas, pedaços de lençóis ensanguentados, além de fotos do acontecimento, que valem dois mil dólares, logicamente mais baratos do que as referidas peças.  Bits and Pieces, nome de uma exposição em Manhattan, chegou a expor botas velhas, cabeças de veado, um pouco de grama, pedras de quartzo e pedaços de unha cortada dos dedões dos pés do artista (Gardner, 1996).

               Se estamos ou não considerando artísticos esses acontecimentos, não é nossa tarefa discutir agora.  Não podemos negar é que nos elevamos ou mudamos o curso do viver através da fabricação de restos.

               Para Freud, toda a noção de diferença que existe entre as coisas parte da diferença entre sexos.  A etimologia da palavra confirma: sexo vem de secionar, dividir.  Procuramos sempre saber como o que é dividido, fragmentado, pode voltar a se rejuntar.  Essa é a verdadeira reciclagem que interessa à psicologia, pois se trata aí de Eros, do amor.  Desta reciclagem decorrerão todas as outras.  Se as pessoas se entendem, se rejuntam, o resto virá como conseqüência.  O mal-estar não vem do fragmentário, do múltiplo, do diferente que está no mundo, mas da forma como a qual essas coisas são vividas como despedaçamento interno.  E lembra assim aquilo que o ‘entendimento’, a explicação, o ‘esclarecimento’, dado unicamente no campo intelectual, não podem reorganizar, porque o que realmente solda as coisas entre os homens é a inteireza do seu mundo afetivo.  Por isso, para a criança, é tão doloroso ver os pais brigarem.  Ela terá dentro de si uma “imagem” vivida, uma “representação” continuamente ressentida, despedaçada do afeto. 

                              

O CAOS, O SUJO, A RE-ORGANIZAÇÃO E A COBIÇA, O PODER


               Freud mostrou, ao longo de toda a sua obra, como estamos continuadamente evitando os nossos próprios excrementos como forma de esconder o nosso fascínio por eles.  É nesse sentido que se diz vulgarmente “que o que se quer mesmo é chafurdar na lama” ou como Santo Tomás: inter urinas et faeces nascimur.  A mania de limpeza esconde de nós nossa vocação para o escatológico, para o caótico.  E isso explica, de certo modo, porque as pessoas educadas mantêm limpos uns lugares e sujam outros, mais distantes de sua morada.  Se nascemos entre fezes e urinas, devemos continuamente procurar lá a razão para arrebitarmos tanto o nariz diante de nossa precariedade.  Depois que assumimos a posição ereta, nos distanciamos de odores que nos orientavam, e, diante desse “recalque orgânico” (Freud, 1974:435) nos afastamos do que é nosso destino.  

               Não é por outro motivo que se persegue tão diabólica e curiosamente a intimidade dos outros.   É como se no âmago desta intimidade fôssemos descobrir o nascimento de nossa vida, na medida em que iríamos maravilhosamente descobrindo o modo de fabricar uma vida de prazeres e seus produtos.  E a fúria nessa busca é tão compulsória que, em caso de algum acidente, como aconteceu com a lamentada princesa inglesa Diana, vamos até as sucatas na ânsia de registrar não importa o quê.  Não importa, contanto que expresse a fúria, algum movimento, alguma moção de busca, quase que uma investida de inquérito, onde procuramos algo que nos parece ter sido roubado.  O que nos foi roubado, no caso, é do campo da subsistência, da necessidade sem o que estamos mortos.  “E onde paira a morte, aí floresce o amor”, nos lembra Ivan Klima (1993:30).  Mas esse amor deve atravessar fronteiras indizíveis, inomináveis, para cumprir seu caminho, pois


De todo o lixo que nos atola e nos ameaça com seu hálito de decomposição, o mais perigoso é a massa de idéias descartadas.  Elas se empilham sobre nós, escorregam pelas ladeiras de nossas vidas.  As almas que são por elas tocadas começam a murchar, e logo ninguém mais volta a vê-las vivas. (Klima, 1993:153)



               Essa afirmação é uma homenagem aos arquivistas.  Eles devem ter esperança de que algum dia se possa descobrir algo em seus preciosos guardados.

                Para a psicanálise, pois, quando se levantam os restos, os lixos, os restos em diferentes estamentos da sociedade, o que aparece de mais interessante nessas sobras não é o que pode ser aproveitado e que entra em desperdício financeiro.  É a vida fastidiosa e desperdiçada de uns e a luta agônica e cruel de outros.  O que se joga fora, em profusão, são ideias ligadas a aproveitamento.  Aqui, a necessidade de uma contínua reavaliação do poder e de quem o detém, bem como a capacidade de rejuntar restos exigem uma humildade que, sendo diferente de humilhação, tampouco pode se confundir com a subserviência ou com a arrogância.  Estas se ligam a um despedaçamento, a uma fragmentação (Bion, 1994) mascarada, escondida por uma formação reativa.  O poder como exercício de arrogância exclui o trabalho e o labor do outro, no sentido utilizado por Arendt (1995): labor é o produto de sua força e do seu cansaço, e torna inútil seu esforço e sua vida, uma vez que um des-empenho do viver está sempre fundado em trabalhos naturais do corpo como o trabalho de parto, a menstruação, a amamentação, a sustentação de um filho etc., e não podem ser avaliados.




O EXCLUÍDO, O SUJO É O COBIÇADO


               Com a morte e o sexual, no sentido psicanalítico do termo (que é assim uma máquina de mostrar diferenças), rejeita-se o que é desprazeroso e constrói-se, no imaginário, um sentido de excremento a todo o descartado.  Afastamos de nós, como estranho (Freud, 1969) e inquietante tudo o que não nos é útil que, daí em diante, passa a ser vivido como nocivo e venenoso e deve ficar distante, como excesso insuportável, como o irmão e a irmãzinha são um para o outro, uma vez que são inúteis, ou melhor, peçonhentos (schädlich) para compartilhar do melhor que, ali, é urgência.  Na urgência – temos aqui a fonte do mal-estar atual – na velocidade, tudo perde sua diferença, sua singularidade, a ser sustentada. Como vemos, na aceitação de errâncias, soluções equivocadas para nossas urgências.  Afastando o estranho, o diferente, o singular, caímos na pobreza interna, vinda da repetição.

               E a pobreza que o lixo traz, como imagem, vem dessa lástima interna em que o mundo é visto como um todo igual, onde somente se pode consumir, na urgência e na pressa, e se desaparece no mar de igualdade, de mesmice, juntamente com o consumido.  Não é o que o lixo tem de “sujo”, de diferente de nossa intimidade, o que produz o sentimento de aversão ou de nojo.  O que é inquietante para o sujeito, ao contrário, é uma des-ordem interna que o lixo pode representar, onde o que nele é imperativo de afastamento, de perda, nos traz a presença difícil da impossibilidade de retomada.  Cada um de nós tem uma ordem possível para as coisas.  A impossibilidade de sonhá-la é que nos provoca aversão e revolta.  Carmen Da Poian, em sua aulas no Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, nos lembra que o nojo e a vergonha são as formas mais primitivas do superego e, podemos dizer, de instalação interna da lei. 

                  É como recusa que a lei é, inicialmente, introduzida em nosso mundo interno.  O que vigia para a legalidade, a ser introduzida para conter nossos sonhos (essa instância que a psicanálise nomeou como superego e, podemos dizer, de instalação interna da lei.  É como recusa que a lei e, inicialmente, introduzida em nosso mundo interno.  O que vigia para a legalidade, a ser introduzida para conter os nossos sonhos (essa instância que a psicanálise nomeou como superego ou supereu) aparece, nos primórdios de nossa vida emocional, como uma ameaça de fragmentação definitiva, ou como uma lembrança contínua de um lugar despedaçado de onde viemos.  (O bebê pega e olha o pé, a mão, como pedaços fora dele.  Esses pedaços serão unificados pelo cuidado que é espelho, imagem do parental, e essa unidade aparecerá, depois, como imagem inicial de si mesmo).  Lá era onde as “coisas” roubavam nossos sentidos com tal força de atração e era onde solicitavam diferente e insistentemente as partes e as propriedades de nossos corpos.

               E assim a pobreza, a penúria e mesmo os delírios de ruína e mendicância que o lixo e seus frequentadores nos trazem vêm desse despaçadamento impossível de ser vivido.  Por este motivo, devemos retomar um exame dos restos e da emocionalidade a eles ligada para nos aproximar um pouco mais das “essências”, sempre impossíveis de serem vividas nas representações, como nos diz Silviano Santiago (1999).  Marta Velloso (1996) nos mostra que nem mesmo o motorista do veículo coletor gosta da proximidade do lixeiro que com ele trabalha.  É como se fossem portadores de uma lepra pré-histórica, arcaica – a hanseníase não é hoje mais essa ameaça – e de toda a ideia de contágio ligada ao lixo, no mundo interno, que para a psicanálise é sempre o imundo, lugar do que é interditado, proibido, sujo, inominável.  Essa reflexão poderá ser estendida para a vida de um indivíduo de quem não gostamos sequer de lembrar, o coveiro.  É ainda Marta quem nos lembra que o lixeiro, entre nós, é gari, corruptela de Gary, o primeiro proprietário da firma de limpeza urbana no Rio.  Como o personagem Fergus do filme Traídos pelo Desejo, de Neil Jordan, que poderia ter qualquer nome, não seria necessário lembrar qual, contanto que ele não se esquecesse de para quem trabalhava.  O nome dessa firma de construção civil era, de forma impiedosa, no filme The Lord – o senhor, o dono, o que tem o direito de nomear, de-significar e re-organizar e pode misturar lixos e corpos humanos em uma vala comum.  Aí está a real dificuldade da chamada gerência participativa, posto que toda participação exige uma nomeação, e essa nomeação não é apenas um ato cartorial e, sim, um reconhecimento de competência.                

É saindo da massa, da multidão, da morte ou do inominável, que o sujeito procura seu nome.  Na massa informe é excluído, rejeito, lixo, e essa saída implica refazer-se, com nova ordem, o percurso da própria vida.  Por isso, a técnica de viver do ser humano nasce de uma freqüência ao i-mundo, ou àquilo que Niezsche chamou de “demasiadamente humano”, em cujo espaço sem tempo nos reencontramos com nossas “essências”.

               O lixo tem valor relativo para uns e para outros, nos diz Cristina Sisinno (1995) falando de coisas mais objetivas.  Segundo ela, o conceito de utilidade é relativo.  Acrescentamos que isso é mais verdade ainda para o mundo subjetivo.  O sujeito organiza seu mundo excluindo o que julga mau e introjetando o que julga bom.  E chega a negar tudo o que despreza, que, para ele, passa mesmo a não existir, como ensinou Freud (1925).  Assim também o sujeito organiza seu grupo, e, para isso, exclui membros.  O grupo com uma inifinidade de membros seria a massa.

               Com o afastamento do outro e a não-existência de ligações mais profundas com as ‘razões’ externas o que é ‘degradação’ para uns é ‘fonte de sustento’ de vida para outros.  Acreditamos ainda que o que faz o ‘valor dado à vida’ humana ser confundido com a “própria concepção da palavra lixo” (Sisinno, 1995:110) não é o ofício escolhido, e sim o lugar que a sociedade tem para a precariedade e a fragilidade que levamos conosco em nossos corpos.   

               Aí estão os espaços de reinvenção do mundo, das co-moções e também das compulsões.  É nisso que se transforma o nosso desejo quando não encontramos, no mundo, nenhum lugar e nenhuma possibilidade de nossa “situação”, de acolhimento para um corpo que é, assim, enganado, seduzido, enfeitado, usado e, mais lamentavelmente, excluído ou exterminado, como as crianças de rua, os mendigos atualmente.

               Por isso, se o sonho é a matéria-prima de nossa ek-sistência, devemos lembrar que um nome é construído pelo próprio sujeito a partir de sua ação no mundo, mas em um mundo onde haja espaço para a utopia, onde aquele e aquilo que excluímos, com nojo, e em nome de alguma lei, deva ser retomado com força de re-con-sider-ação.

               Assim, a pobreza psíquica vinda com a repetição (Freud, 1974) é o que nos traz a frustração (Versagung) e toda a agressividade em um mundo que não permite o novo, vindo da manifestação das singularidades.  Isso nos conduz ao mal-estar que é também um “Mal-Estar na Cultura”.  Todas as tentativas do sujeito rateiam, falham (ver-sagt), ficando ele impossibilitado de dizer (sagen) seu próprio nome, o que não é, como dissemos, um ato cartorial; ou seja, o sujeito fica impedido de produzir sua nomeação, como se diz em psicanálise.  Ou, então, condenado a maldizê-la em explosões de humor, por exemplo, tornando-se, assim, um maldito, um excluído, um refugo que hoje, pelo grosso contingente nas margens da sociedade, segunda Hanna Arendt (apud Cruz, Netto, 1995:54), é mais um “supérfluo” a ser exterminado do que um membro do “exército de reserva”, destinado a uma mão-de-obra barata e em circulação nas empresas, como se queria há bem pouco tempo.  




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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