UM AMBIENTE AMIGÁVEL: CLÍNICA DA CULTURA E CULTURA DE CLÍNICAS
Jorge de Campos Valadares
RESUMO: Há, na cultura atual, uma
infinidade de espaços legitimados pela sociedade, que são lugares clínicos, na
medida em que “continuam” uma “atenção específica” e viabilizam uma Situação
para o Sujeito. Essas clínicas,
entretanto, deixam uma frustração e um “mal-estar” e, como a própria
Psicanálise, não tem como encaminhar bem o seu trabalho. Pensar a questão é uma tarefa para
psicanalistas que, como Freud, não devem se esquecer do enraizamento da clínica
nas razões da Cultura. Essa, como um sítio de “continuidade”, oferece espaço,
horizonte e perspectivas.
UNITERMOS: Psicanálise. Cultura. Ambiente. Sujeito.
Situação.
Im Abgrund wohnt die Wharheit.
(A verdade habita o abismo)
Schiller
Parece
que os psicanalistas deve se deter em uma reflexão cada vez mais inadiável:
existe algum discuido com aquilo que estamos nomeando como a Situação do Sujeito e que se refere à
“nova ação” (neue Aktion, Freud,
1914) que é possibilitada por um ambiente no sentido winnicottiano do termo,
isto é, o sítio por onde se viabilizam ações situadas que ao mesmo tempo
possibilitam causa eficiens e que
podem ser desenvolvidas pelo Sujeito humano, para que este organize sua
nomeação, seu passe. São lugares interno/externos de surgimento
daquele Sujeito.
Partimos
da premissa de que não é possível um corpo virtual atender a um aparelho
psíquico.
Presenciamos,
cada vez mais, uma infinidade de lugares,
que, caminhando ao lado dos dolorosos processos de exclusão, são Espaços no sentido mais amplo possível,
sendo disponíveis às pessoas, por onde elas podem iniciar um processo de Situação, mas que, no final do percurso,
algo lhe faltando, lhe produz frustração (Versagung,
Freud, 1930), rateia (versagt) e assim lhe conduz ao mal-estar. Pensamos aqui, em especial, naquilo que
Georges Benko (1996) denominou lugar
nenhum, onde, na infinidade de serviços disponíveis, encontra-se algo do
negativo, na natureza de uma ação
específica (Freud, 1885) e cujo exemplo mais gritante é a infinidade de
clínicas, de técnicas do corpo, por onde um ego corporal, uma incorporação
(Freud, 1914), um “eu corpo” (Masud Khan), ou seja, algum início de
identificação é ensaiada, mas que não chegando a bom termo, pode devolver o
sujeito a identificações primordiais e, consequentemente, à melancolia e ao
sentimento de rancor, ao ressentimento que lhe é correspondente, ou às
agressividades próprias da depressão.
Sabemos que a psicanálise não é tudo; apenas tem a sua especificidade. Não estamos, pois, querendo dizer que as
atividades diversas não devam existir e, mais do que isso, se existem, estão
sendo lugares de percurso.
Somente
pensamos que, em algum momento, a contribuição do psicanalista é central nessa
reflexão que parece urgente, no sentido de apontar algo novo.
Gostaríamos
de iniciar essa reflexão sobre o lugar
por onde pode se inserir uma situação
desejante, diante dos desvios norteadores, como, por exemplo, aqueles trazidos
pelas técnicas dos “formadores de opinião”.
A imprensa dá, através de algumas pessoas, um lugar imenso a todas essas
novas terapêuticas.
Não
nos esqueçamos nunca que a teoria é uma técnica de representação de mundo. Outra perplexidade nos torna nesses lugares: deixando de ser um espaço de
encontros e reencontros, eles passaram a ser sítios de repetição e, como
compulsão, distorce ritualísticas, reintroduzindo o “demoníaco” por onde o
corpo volta a situações como a
do neomessianismo e o acompanha como lugar de encantamento (Reize), sobretudo através da procura de
um sentimento “especial” (Fairbairn, 1980) próprio dos estados
esquizoides.
Entre
nós já há quem pense que estes estados constituem uma forma de viver comum
(Armony, 1996) um “momento”, pois, de Situação.
Pensar
qualquer produção de qualquer saber, hoje, implica em se defrontar com a
perplexidade de que os campos de
conhecimento se encontram justamente no enfrentamento do abismo que os separam. Os paradigmas relativos às teorias do caos
(I. Prigogine) e da complexidade (E. Morin), não podem mais ser desconhecidos,
porque é aí que todos procuram sua verdade, como já nos havia ensinado o poeta.
Sabemos
que vida é desvio. É invenção que nos
leva a encontrar, ou dizendo deoutra maneira, mais ao gosto de Freud,
reencontrar algo diferente do gozo, do biológico puro, da morte do ponto de
vista do humano, da perspectiva da Cultura.
Sabemos, também, com Sami Ali (1974) que sem encontro não há reencontro
e daí a importância dos lugares, dos espaços e das Situações, das ações situadas.
Estamos voltando a nos referir, aqui, às novas ações psíquicas (Freud,
1914), às invenções, que são situadas na medida em que procuram desvios, para
reencontros em encontros, em negociações humanas para tomar emprestado um termo
da Antropologia por onde a morte é
enganada. Estes lugares são os
ambientes winnicottianos de um lado, mas são também espaços onde são possíveis
ações de atenção específica (Freud, 1985) por onde a necessidade se esvai
metamorfoseando-se em desejo.
Os
desvios, entretanto, vão se transformando em lugares de equívocos quando o desejo, sempre adiado, é substituído
(Ersazt) por um ideal inatingível,
sempre especial, inalcançável, e é afirmação (Bejahung, 1925) pura, reunida em uma unificação histórica, um uno
(Boons, 1979), que tentando reproduzir a prática totêmica, se perde em
ritualísticas de de volta, por onde o corpo mortificado esquece, no gozo, de
penetrar na cena humana. Colocamos esse
ideal com nossas demandas – que são, como todas as demandas, em realidade,
exigências – nas quais somente se produzem desencontros.
Na
relação amorosa o exemplo típico desse momento é o das ritualísticas de
acusação de falta de amor, por onde a vingança, os gestos especulares e
espetaculares , substituem a simplicidade e a perplexidade, sempre necessárias
para a vitalidade da vida (Ortega y
Gasset) e a liberdade (Miró), isto é, a vida em comum. Essa vitalidade
se alimenta de fatores de atenção
específica, dos prolongamentos ambientais que as velocidades, hoje, roubam
e furtam do sujeito. Sabemos por outro
lado que esses momentos de ostentação
e garbo, próprios de agressividade
(Lacan, 1966) do ego, são ao mesmo tempo ensaios de pisada na cena, mas,
enquanto lugar de vingança e violência, viola aquela cena e produz uma volta à
compulsão, ao ressentimento e ao rancor.
Na
relação paterna, com a possibilidade de novos lugares de convívio que a sociedade possibilita, sem produzir
exclusão e ostracismo para o sujeito, o pai pode ser um père-mère (Boons), sem perder seu espaço de pai. A demanda do filho, entretanto, aparecerá
sempre, coroada por marcas históricas ambientais
(Zeldin, 1994), recrudescendo solicitações que adivinha presentes no passado
mais lento (M. Santos, 1993) do
pai. O “tempo lento”, solicitado pelo
filho, característico da função materna, historicamente, parece
encurtar-se. Ele deveria vir, além
daquela infinidade de novos tempo que deve cumprir, e chegam a exaurir as suas
forças de pai, e que devem estar presentes com o “conforto” que a sociedade
moderna “possibilita”. Isso levaria o
pai a um estado de desamparo, pois é para si algo de sua intimidade, que lhe faz falta sempre e lhe é somente
“in-possível”. Aldo desse tempo lento
somente pode voltar pela dádiva (Mauss) graciosa da presença da mulher, que
tem, sobre ele, um saber de outra ordem, da ordem da “outra coisa” (Leclaire),
se liga a um saber relativo a tempos
cíclicos corporais vividos (gravidez, menstruação, tabu da virgindade) e não
poderá aparecer somente com o lugar
de ”função”.
Aqui
cabe um parêntesis para falarmos de proximidades possíveis. Como a função analítica, a função paterna
também tem uma especificidade, mas também nãoé uma função desencarnada. O corpo do pai está mais disponível – o filho
chega a tocá-lo, e a curiosidade o leva a perguntas que devem ser respondidas
sempre diretamente – enquanto a função analítica, não devendo anular a presença do corpo, deve se perguntar
continuamente pelas representações que evoca, possibilitando um destino para o
mundo pulsional aí mobilizado. Mas o
analista, nos momentos em que se pergunta por lugares próprios da função materna – e somente pode fazê-lo em Situação de invenção técnica, lugares
singulares de análise de cada analista, de novidades em sua ação – ele, aí, é
demandado em algum lugar em que o pai também o é. Diríamos, pois, brincando, como os franceses:
o discurso do analista é outro, mais,
quand même... Essas seriam questões da ordem das “semelhanças possíveis”
(E. Santo, 1997). O jogo (em jeu) ou
ar arm-ações (Heidegger) envolvidas nas construções dessas “semelhanças
possíveis”, entretanto, é um fazer constante.
Um ato, que pode transformar em profissão (Ortega) qualquer atividade
criativa, mas que elimina a possiblidade de criar, de inventar. Esse fazer necessário a toda a criação
envolve a técnica que transforma o corpo em instrumento de vida e palco de
ritualísticas, que podem se transformar em repetições em compulsões. Até certo ponto “repetir significa”; depois,
o uso da graça corporal ematos de “obrigação” faz da vida uma vida “como se”,
fonte de intenso mal-estar.
Voltando
ao nosso tema, parece que a formação de opinião tem tentado nos levar a crer
que podemos tudo. Que o uno da ação, da
coesão histórica dos egos (Boons) e dos Egocratas pode substituir todo o jogo
do pensamento. A própria psicanálise,
com um certo culto a uma “introspecção maligna” (Ivan Ribeiro), pode ser um
lugar de desencontro. Como fugir à
melancolia e à mágoa que a constitui, ao ensimesmamento que se apresenta como
mal de nossa época, ao qual nos referimos (Valadares, 1994), e que parece
atingir os próprios profissionais da psicanálise de forma avassaladora? Como,
deixando de ser “eus-corpos” (M. Khan), implicados em uma cena que não
escolhemos, às vezes violenta, “formada” à nossa revelia, poderemos pensar e
transformar nosso pensamento em uma produção (poiesis) de lugares, onde poderemos sempre nos reencontrar, para
além das perdições, no convívio? Onde a competição pode se transformar em um
jogo de confrontos (Pagès)?
A
instituição, compreendendo aí a instituição psicanalítica como formadora,
recebe "transferências": de outras instituições da sociedade, como demandas a
serem entendidas, traduzidas. Se essa
instituição não se transformar em uma “unstituição" (Garcia) está ai, na
sociedade, implicada (Lourau), e, para “ek-xistir”, deve fazer essa análise.
Pensamos
um lugar, espaço de imaginário, por
onde os dês-caminhos, os desvios, são ensaiados. Esse lugar é o pequeno grupo. Esse pequeno
não se refere ao número de seus participantes, pois pode atingir mesmo aos
implicados nas “árvores telemáticas” (P. Levy.). Trata-se de lugares por onde um ambiente de implicações (Khan, Loureau) são
viabilizados, e, a partir da perplexidade, do paradoxal, o humano permite um
destino novo par os mundos pulsionais, que não seriam mais a tentativa
ortopédica do encanamento de almas. Há,
aí, um jogo de ensaio para vivência do oceânico (Freud, 1927), e de totalidades
com pretensões universalizantes, a um tempo particulares e singulares.
Esse
lugar é um espaço de sustentação (holding) que a um grupo se oferece, e
aos seus membros como prolongamento dos acolhimentos iniciais, espaços de
névoa, sem os quais os sítios se igualam como territórios de tortura – o tempo
consumido no desconforto dos transportes coletivos, no sistema “viário” é um
desses espaços – e onde há uma suspensão (Aufhebung)
de afetos ligados a representações articuladas a significações alheias a
acordos daquele grupo. É um Espaço Ambiente, lugar de ensaios (Probeaktion, Freud, 1925), espaço “como
si”, que viabiliza perguntas, entre o sonho e a realidade, e que encaminha
possibilidades de organização, de instituinte.
É um lugar de nascimentos da e
na Cultura que, como nos mostra E.
Santo (1997), é um espaço de culto,
etimologicamente vem de colo, e se liga ao “encontrar-se com”.
O
espaço que situamos como lugar do
surgimento do sujeito, viabilizador por excelência do processo de criação, se
situa entre a ação e o pensamento, lugares de proximidade, também de
aproximação no sentido da matemática, acolhe gestos nascentes da corporalidade
que vão ganhando significação, na medida em que são instrumentos de ensaio (Probeaktion, Freud, 1925), de
inter-ação. Entre adolescentes, a gíria
é quase sempre expressão desses gestos, e saem das profundidades, do abismo,
como por exemplo os termos atuais “sinistro“ e “chocante”. Par o grupo dos Sem Terra a terra como a
água, ou a luz elétrica (Kramer, 1997), um lugar de suas transformações e deixa
de ser significação bruta para ser metáfora, símbolo, na medida em que o grupo
a reinventa como seio, como lugar de alimento, ao mesmo tempo em que o corpo,
como a enxada, o trator, são reinventados como instrumentos de convívio.
O
Sujeito, para a psicanálise, não sente uma primordial necessidade de ser um
cidadão. Precisa de re-encontros. Isso se dá no grupo que o re-conhece. E isso pode estar bastante longe da Pólis, do
Estado.
Mais próximo
ao sonho, o lugar do sujeito é uma terra estranha, onde ele pode de-existir
(Major) de credo, raça, cor, nação, para se buscar lá adiante onde os espaços
são apenas (?) perspectivas...
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