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quinta-feira, 20 de março de 2014

UM AMBIENTE AMIGÁVEL: CLÍNICA DA CULTURA E CULTURA DE CLÍNICAS

UM AMBIENTE AMIGÁVEL: CLÍNICA  DA  CULTURA E CULTURA DE CLÍNICAS


Jorge de Campos  Valadares



RESUMO: Há, na cultura atual, uma infinidade de espaços legitimados pela sociedade, que são lugares clínicos, na medida em que “continuam” uma “atenção específica” e viabilizam uma Situação para o Sujeito.  Essas clínicas, entretanto, deixam uma frustração e um “mal-estar” e, como a própria Psicanálise, não tem como encaminhar bem o seu trabalho.  Pensar a questão é uma tarefa para psicanalistas que, como Freud, não devem se esquecer do enraizamento da clínica nas razões da Cultura. Essa, como um sítio de “continuidade”, oferece espaço, horizonte e perspectivas.

UNITERMOS: Psicanálise. Cultura. Ambiente. Sujeito. Situação.

Im Abgrund wohnt die Wharheit.
(A verdade habita o abismo)
Schiller



                Parece que os psicanalistas deve se deter em uma reflexão cada vez mais inadiável: existe algum discuido com aquilo que estamos nomeando como a Situação do Sujeito e que se refere à “nova ação” (neue Aktion, Freud, 1914) que é possibilitada por um ambiente no sentido winnicottiano do termo, isto é, o sítio por onde se viabilizam ações situadas que ao mesmo tempo possibilitam causa eficiens e que podem ser desenvolvidas pelo Sujeito humano, para que este organize sua nomeação, seu passe. São lugares interno/externos de surgimento daquele Sujeito.

                Partimos da premissa de que não é possível um corpo virtual atender a um aparelho psíquico.

                Presenciamos, cada vez mais, uma infinidade de lugares, que, caminhando ao lado dos dolorosos processos de exclusão, são Espaços no sentido mais amplo possível, sendo disponíveis às pessoas, por onde elas podem iniciar um processo de Situação, mas que, no final do percurso, algo lhe faltando, lhe produz frustração (Versagung, Freud, 1930), rateia (versagt) e assim lhe conduz ao mal-estar.  Pensamos aqui, em especial, naquilo que Georges Benko (1996) denominou lugar nenhum, onde, na infinidade de serviços disponíveis, encontra-se algo do negativo, na natureza de uma ação específica (Freud, 1885) e cujo exemplo mais gritante é a infinidade de clínicas, de técnicas do corpo, por onde um ego corporal, uma incorporação (Freud, 1914), um “eu corpo” (Masud Khan), ou seja, algum início de identificação é ensaiada, mas que não chegando a bom termo, pode devolver o sujeito a identificações primordiais e, consequentemente, à melancolia e ao sentimento de rancor, ao ressentimento que lhe é correspondente, ou às agressividades próprias da depressão.  Sabemos que a psicanálise não é tudo; apenas tem a sua especificidade.  Não estamos, pois, querendo dizer que as atividades diversas não devam existir e, mais do que isso, se existem, estão sendo lugares de percurso.

                Somente pensamos que, em algum momento, a contribuição do psicanalista é central nessa reflexão que parece urgente, no sentido de apontar algo novo.

                Gostaríamos de iniciar essa reflexão sobre o lugar por onde pode se inserir uma situação desejante, diante dos desvios norteadores, como, por exemplo, aqueles trazidos pelas técnicas dos “formadores de opinião”.  A imprensa dá, através de algumas pessoas, um lugar imenso a todas essas novas terapêuticas.

                Não nos esqueçamos nunca que a teoria é uma técnica de representação de mundo.  Outra perplexidade nos torna nesses lugares: deixando de ser um espaço de encontros e reencontros, eles passaram a ser sítios de repetição e, como compulsão, distorce ritualísticas, reintroduzindo o “demoníaco” por onde o corpo volta a situações como a do  neomessianismo e o acompanha como lugar de encantamento (Reize), sobretudo através da procura de um sentimento “especial” (Fairbairn, 1980) próprio dos estados esquizoides. 

                Entre nós já há quem pense que estes estados constituem uma forma de viver comum (Armony, 1996) um “momento”, pois, de Situação
 
                Pensar qualquer produção de qualquer saber, hoje, implica em se defrontar com a perplexidade de que os campos  de conhecimento se encontram justamente no enfrentamento do abismo que os separam.  Os paradigmas relativos às teorias do caos (I. Prigogine) e da complexidade (E. Morin), não podem mais ser desconhecidos, porque é aí que todos procuram sua verdade, como já nos havia ensinado o poeta.

                Sabemos que vida é desvio.  É invenção que nos leva a encontrar, ou dizendo deoutra maneira, mais ao gosto de Freud, reencontrar algo diferente do gozo, do biológico puro, da morte do ponto de vista do humano, da perspectiva da Cultura.  Sabemos, também, com Sami Ali (1974) que sem encontro não há reencontro e daí a importância dos lugares, dos espaços e das Situações, das ações situadas.  Estamos voltando a nos referir, aqui, às novas ações psíquicas (Freud, 1914), às invenções, que são situadas na medida em que procuram desvios, para reencontros em encontros, em negociações humanas para tomar emprestado um termo da Antropologia por onde a morte é enganada.  Estes lugares são os ambientes winnicottianos de um lado, mas são também espaços onde são possíveis ações de atenção específica (Freud, 1985) por onde a necessidade se esvai metamorfoseando-se em desejo.

                Os desvios, entretanto, vão se transformando em lugares de equívocos quando o desejo, sempre adiado, é substituído (Ersazt) por um ideal inatingível, sempre especial, inalcançável, e é afirmação (Bejahung, 1925) pura, reunida em uma unificação histórica, um uno (Boons, 1979), que tentando reproduzir a prática totêmica, se perde em ritualísticas de de volta, por onde o corpo mortificado esquece, no gozo, de penetrar na cena humana.  Colocamos esse ideal com nossas demandas – que são, como todas as demandas, em realidade, exigências – nas quais somente se produzem desencontros.

                Na relação amorosa o exemplo típico desse momento é o das ritualísticas de acusação de falta de amor, por onde a vingança, os gestos especulares e espetaculares , substituem a simplicidade e a perplexidade, sempre necessárias para a vitalidade da vida (Ortega y Gasset) e a liberdade (Miró), isto é, a vida em comum.  Essa vitalidade se alimenta de fatores de atenção específica, dos prolongamentos ambientais que as velocidades, hoje, roubam e furtam do sujeito.  Sabemos por outro lado que esses momentos de ostentação e garbo, próprios de agressividade (Lacan, 1966) do ego, são ao mesmo tempo ensaios de pisada na cena, mas, enquanto lugar de vingança e violência, viola aquela cena e produz uma volta à compulsão, ao ressentimento e ao rancor.      

                Na relação paterna, com a possibilidade de novos lugares de convívio que a sociedade possibilita, sem produzir exclusão e ostracismo para o sujeito, o pai pode ser um père-mère (Boons), sem perder seu espaço de pai.  A demanda do filho, entretanto, aparecerá sempre, coroada por marcas históricas ambientais (Zeldin, 1994), recrudescendo solicitações que adivinha presentes no passado mais lento (M. Santos, 1993) do pai.  O “tempo lento”, solicitado pelo filho, característico da função materna, historicamente, parece encurtar-se.  Ele deveria vir, além daquela infinidade de novos tempo que deve cumprir, e chegam a exaurir as suas forças de pai, e que devem estar presentes com o “conforto” que a sociedade moderna “possibilita”.  Isso levaria o pai a um estado de desamparo, pois é para si algo de sua intimidade, que lhe faz falta sempre e lhe é somente “in-possível”.  Aldo desse tempo lento somente pode voltar pela dádiva (Mauss) graciosa da presença da mulher, que tem, sobre ele, um saber de outra ordem, da ordem da “outra coisa” (Leclaire), se liga a um saber relativo a  tempos cíclicos corporais vividos (gravidez, menstruação, tabu da virgindade) e não poderá aparecer somente com o lugar de ”função”.

                Aqui cabe um parêntesis para falarmos de proximidades possíveis.  Como a função analítica, a função paterna também tem uma especificidade, mas também nãoé uma função desencarnada.  O corpo do pai está mais disponível – o filho chega a tocá-lo, e a curiosidade o leva a perguntas que devem ser respondidas sempre diretamente – enquanto a função analítica, não devendo anular a presença do corpo, deve se perguntar continuamente pelas representações que evoca, possibilitando um destino para o mundo pulsional aí mobilizado.  Mas o analista, nos momentos em que se pergunta por lugares próprios da função materna – e somente pode fazê-lo em Situação de invenção técnica, lugares singulares de análise de cada analista, de novidades em sua ação – ele, aí, é demandado em algum lugar em que o pai também o é.  Diríamos, pois, brincando, como os franceses: o discurso do analista é outro, mais, quand même... Essas seriam questões da ordem das “semelhanças possíveis” (E. Santo, 1997). O jogo (em jeu) ou ar arm-ações (Heidegger) envolvidas nas construções dessas “semelhanças possíveis”, entretanto, é um fazer constante.  Um ato, que pode transformar em profissão (Ortega) qualquer atividade criativa, mas que elimina a possiblidade de criar, de inventar.  Esse fazer necessário a toda a criação envolve a técnica que transforma o corpo em instrumento de vida e palco de ritualísticas, que podem se transformar em repetições em compulsões.  Até certo ponto “repetir significa”; depois, o uso da graça corporal ematos de “obrigação” faz da vida uma vida “como se”, fonte de intenso mal-estar.

                Voltando ao nosso tema, parece que a formação de opinião tem tentado nos levar a crer que podemos tudo.  Que o uno da ação, da coesão histórica dos egos (Boons) e dos Egocratas pode substituir todo o jogo do pensamento.  A própria psicanálise, com um certo culto a uma “introspecção maligna” (Ivan Ribeiro), pode ser um lugar de desencontro.  Como fugir à melancolia e à mágoa que a constitui, ao ensimesmamento que se apresenta como mal de nossa época, ao qual nos referimos (Valadares, 1994), e que parece atingir os próprios profissionais da psicanálise de forma avassaladora? Como, deixando de ser “eus-corpos” (M. Khan), implicados em uma cena que não escolhemos, às vezes violenta, “formada” à nossa revelia, poderemos pensar e transformar nosso pensamento em uma produção (poiesis) de lugares, onde poderemos sempre nos reencontrar, para além das perdições, no convívio? Onde a competição pode se transformar em um jogo de confrontos (Pagès)?

                A instituição, compreendendo aí a instituição psicanalítica como formadora, recebe "transferências": de outras instituições da sociedade, como demandas a serem entendidas, traduzidas.  Se essa instituição não se transformar em uma “unstituição" (Garcia) está ai, na sociedade, implicada (Lourau), e, para “ek-xistir”, deve fazer essa análise.

                Pensamos um lugar, espaço de imaginário, por onde os dês-caminhos, os desvios, são ensaiados.  Esse lugar é o pequeno grupo.  Esse pequeno não se refere ao número de seus participantes, pois pode atingir mesmo aos implicados nas “árvores telemáticas” (P. Levy.).  Trata-se de lugares por onde um ambiente de implicações (Khan, Loureau) são viabilizados, e, a partir da perplexidade, do paradoxal, o humano permite um destino novo par os mundos pulsionais, que não seriam mais a tentativa ortopédica do encanamento de almas.  Há, aí, um jogo de ensaio para vivência do oceânico (Freud, 1927), e de totalidades com pretensões universalizantes, a um tempo particulares e singulares.

                Esse lugar é um espaço de sustentação (holding) que a um grupo se oferece, e aos seus membros como prolongamento dos acolhimentos iniciais, espaços de névoa, sem os quais os sítios se igualam como territórios de tortura – o tempo consumido no desconforto dos transportes coletivos, no sistema “viário” é um desses espaços – e onde há uma suspensão (Aufhebung) de afetos ligados a representações articuladas a significações alheias a acordos daquele grupo.  É um Espaço Ambiente, lugar de ensaios (Probeaktion, Freud, 1925), espaço “como si”, que viabiliza perguntas, entre o sonho e a realidade, e que encaminha possibilidades de organização, de instituinte.  É um lugar de nascimentos da e na Cultura que, como nos mostra E. Santo (1997), é um espaço de culto, etimologicamente vem de colo, e se liga ao “encontrar-se com”.

                O espaço que situamos como lugar do surgimento do sujeito, viabilizador por excelência do processo de criação, se situa entre a ação e o pensamento, lugares de proximidade, também de aproximação no sentido da matemática, acolhe gestos nascentes da corporalidade que vão ganhando significação, na medida em que são instrumentos de ensaio (Probeaktion, Freud, 1925), de inter-ação.  Entre adolescentes, a gíria é quase sempre expressão desses gestos, e saem das profundidades, do abismo, como por exemplo os termos atuais “sinistro“ e “chocante”.  Par o grupo dos Sem Terra a terra como a água, ou a luz elétrica (Kramer, 1997), um lugar de suas transformações e deixa de ser significação bruta para ser metáfora, símbolo, na medida em que o grupo a reinventa como seio, como lugar de alimento, ao mesmo tempo em que o corpo, como a enxada, o trator, são reinventados como instrumentos de convívio.

                O Sujeito, para a psicanálise, não sente uma primordial necessidade de ser um cidadão.  Precisa de re-encontros.  Isso se dá no grupo que o re-conhece.  E isso pode estar bastante longe da Pólis, do Estado.

    Mais próximo ao sonho, o lugar do sujeito é uma terra estranha, onde ele pode de-existir (Major) de credo, raça, cor, nação, para se buscar lá adiante onde os espaços são apenas (?) perspectivas...










REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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