Van Gogh

Van Gogh

Pesquisar este blog

quinta-feira, 20 de março de 2014

SOBRE O AFETO

SOBRE O AFETO


Jorge  de  Campos Valadares


Im Anfang War die Tat

(No princípio, foi o ato)


Goethe, Fausto, citado por Freud no Totem e Tabu


 Para Fausto Guimarães


Introdução


                 As ideias que foram alinhavadas no presente texto partem de um interesse inicial pelo submundo das emoções.  As tentativas correntes na psicanálise de “representar”  o  mundo emocional do bebê ou suas primeiras moções pulsionais, como as ruminações dos Titãs, os quais, nos primórdios da mitologia, estavam sempre revoltos, e, nas movimentações de terras, mares e ares, esses seres iniciais, dariam a notícia – através de tentativas de juntar montanhas e voltar aos céus – de reorganização do mundo perceptivo.  Este mundo, é lógico, na medida de uma caminhada atemporal e através dos “rastros de recordação” falaria, assim, de vivências “internas” que movimentam o corpo do infante, a um só tempo, como vulcões, terremotos e tempestades.  Deste momento inicial cuja descrição sabe-se tão difícil, Freud nos fala tornando as palavras de Homero “como o mundo inferior da Odisséia, cujos monstros, assim que provavam sangue, despertavam para uma nova vida”.  É um “mundo” que não morre jamais e seus fantasmas estão sempre esperando vez para a reencarnação.  Os céus estão buscando sempre atingir um prazer já conhecido.

                Assim, quando trabalhamos o tema do “duplo”, aquele ser que se levanta de dentro de nós como um “estranho”, que parece-nos conhecido e ao mesmo tempo distante, um outro  que apenas distinguimos com o olhar e com ele comungamos em uma mesa comum onde o grande prato é a luta cotidiana, a devoração, o desgosto, a consumação de um pai ou irmão.  Esse pai ou irmão, mesmo extenuado ou justamente por isso, nos salva ou fulmina.  “Mistério gozozo” de que dão conta todas as religiões, todos os clãs totêmicos, no presente, no dia a dia, e que fala de “momentos” desde sempre novamente repetidos nas tentativas, nos sonhos.

                As construções, pois, das mitologias e teologias falam de esforços do homem para localizar suas emoções.  Esforços que revolvem céus e terras ao mesmo tempo em que as “tripas são feitas coração”, para que o afeto encontre seu lugar a partir de uma marca.  “made in Germany”, nos diz Freud, para uma singularidade de “expressão” ou representação do sentir.

                Dentro dessa perspectiva o nosso interesse aqui parte de uma tentativa de compreensão dos “movimentos”.  Movimentos que formam um aparelho, um aparato, moções pulsionais, emoções, processos estruturais, continentes e conteúdos comuns a todos os homens e que falam paradoxalmente da singularidade.  Aparelho que é um processo que à maneira preferida de Freud – desprezando toda uma tecnologia científica – pode ser chamado, em momentos diversos, de “espírito”, reencarnações da “alma psíquica” ou “aparelho da alma”.  Movimentos esses para dar conta de tentativas humanas que podem focalizar uma “visão interna” e baixar ao mesmo tempo em “outro terreiro” dos meios disponíveis  na nossa “vida de entendimento” .  Isto constitui uma caminhada que parte dos movimentos iniciais de uma mitologia que não deixa de lado todos os sentimentos humanos desde a tensão e o horror, repulsa ou nojo, o medo, a angústia solta.  Abandonos, incorporações e transmigrações de almas psíquicas que passam pela moralidade, pela culpa, pela dúvida e ainda por emoções mais nuançadas como vergonha, futilidade, ridículo, transparência, blefe e perdição.  No mais, essa caminhada que é o trabalho do homem e da cultura.

                Pensando, então, “que ninguém é mais que a criança de si mesmo”, vemos que todos esses sentimentos são e estão na formação do “instrumento da alma” tão pobremente traduzida como aparelho psíquico.  Nessa construção de Freud, onde está todo o trabalho mais delicado (Leistung) do homem como fim de compreender, ou seja, de deslocar e condensar “sentidos”, podemos vislumbrar e aceitar a volta de espíritos mortos e pensar em invejas, ódio e culpa como organizadores de ações ou mesmo formações de reações com a matéria-prima dessas emoções iniciais.  Sem essas “organizações” não teríamos o que possibilita identificações e nos permite viver em grupo.

                É à custa desses esforços de compreensão que a “alma do homem” e a “alma do grupo” vão sendo confundidas, independentemente de formulações menos felizes como a do “inconsciente coletivo”, e que deixariam de lado outros sentidos, abandonariam sentires que pressionam a sofisticação dos “entendimentos”, das representações e vão fabricando a cultura, aumentando assim o “mal-estar”.

                Freud nos advertiu que a evolução da cultura viria à custa de um processo de recalque sempre em andamento, nos espaços e tempos, e, que colocariam o homem “mal à son aise”: estes ficariam pouco à vontade (Unbehagen) com suas emoções.  Estas, por sua vez, não existindo sem suas representações,  sendo e ao mesmo tempo se fazendo, se defrontariam com a tentativa de seu próprio entendimento, um prazer e tirania de continência, contenção e conteúdo, a um só tempo, instalada  e instalando o “espírito”, o “aparelho da alma”.






O que é o amor?



Ihr naht euch wieder,  schwankende Gestalten
(Aproximem-se de novo imagens vacilantes)
Faust, Goethe (Zueignung)

Dorme, ponte, Pernambuco, Rio, Bahia.
Só vigia um ponto negro: meu ciúme.
Mas a sua voz que canta tudo ainda arde.
Tudo é perda, tudo que quer buscar, cadê
Tanta gente...
O ciúme – Caetano Veloso



                Não pensemos o afeto como “conteúdo” de uma e-moção que nos seria dada a conhecer ou seria re-presentada de forma leviana como em certas versões do amor.  Aí em falas nebulosas mas retumbantes poderíamos ser levados a uma confusão, a um engano, um sentimento que pretensamente une, aparecendo, é verdade, à maneira de Eros.  Este trabalho de união, delicadeza nos desempenhos (Leistungen) da energia da libido, nos levaria, quando muito, a nos perguntar o que buscamos... “Existirmos, a que será que se destina”... como faz o poeta.

Pensamos “o antes” do afeto com movimentos, moções, deslizamentos que, às vezes, como em quedas, vertigens, e outras vezes são como em voos.  O trabalho de união aí desempenhado por Eros não é, porém, o de dar conta de um relato de algo derramado para sempre, mas o de falar de uma extensão, uma “aísthesis”, uma estética.  Beleza a ser vivida sem nenhuma obrigação de salvação, e sim para dizer, como Cézanne, “é espantosa a vida”.  O pulsar, o ritmo da vida, é a única coisa ligada a inicial união de Eros. 

                Aquém da poesia, que nos aponta caminhos, o trabalho da psicanálise toma seu ritmo e lança suas questões. 

                No ritmo de nosso trabalho somos sempre tentados por todas as formulações teóricas existentes.  Visitamos as concepções e, partindo do ato de olhar, próprio da atividade clínica, saímos de um gesto perverso, o silêncio com que se assiste a dor do outro, para questões que falam de uma tensão.  “É junto com ela um sentimento de prazer que é acompanhado de um impulso de efetuar uma mudança psicológica e que atua de uma maneira urgente, totalmente estranha à natureza da sensação de prazer”.  É o momento de arte da interpretação: “o artista tem uma urgência que excede a qualquer outra urgência”.
                Alguma coisa em ato, “um re-lance (ein Blick) nas e das zonas erógenas”, um gesto, um olhar que a partir de uma “qualidade” particular de excitação, a beleza, e estamos diante das atrações e percepções ou encantos.  A palavra de Freud para essas qualidade é a mesma: estímulo/encanto (Reiz).

                Diz-se que o ritmo de trabalho no momento do ato analítico exige presteza, urgência.  Olha-se em torno, neste momento estranho, e as imagens vacilam.  “Eu não sou este”, dizemos às vezes em um gesto sem nenhuma valia.  Esse que olha? E não falamos de um olhar “maternal”, de um “cuidado”.  Isso não quereríamos fazer, não seria o momento mais nobre do trabalho analítico.  E aí o sujeito se percebe, então, olhando.  Pois todos nós queremos ser vistos, saber-nos vistos.  Mas saber-nos olhando?...

                O “trabalho amoroso”, sabemos da psicologia social, fala sobre confrontos.

                As atrações, as percepções, os estímulos ou encantos (Reize) ou ainda as seduções, se são a fala de alguém que não se mostra para alguém que não será visto possibilita, no jogo de cena, a “vivência” e a tematização de uma visão.  Como poderíamos chegar a essa tematização? Somos para sempre tensionados, partidos, e a única salvação é sabê-lo.  Tematizar essa clivagem.  São as “tensões” que, ligando partes clivadas “se transformam em intenções”.  E pela nossa intenção somos vistos e queremos, a partir de nossa forma de olhar, ser vistos, percebidos.  Ex-sistir.  Mas não é aí que já havia chegado o poeta?
                Um “Relance” (ein Blick), um gesto de olhar “a partir de uma qualidade particular de excitação”, uma estaticidade da tensão, o momento da beleza nos lança a uma “aísthesis”, uma estética, onde “ocorre um importante papel de introdução” para as zonas erógenas.  Introdução do narcisismo, da estima de si mesmo, do sentimento de si mesmo (... Selbstgefühl).  Essas zonas se orientam, ganham uma nova ordem a partir desse olhar.  Visão ordenada, urgência de parcialidades, jogada de formulações, reinado de reunião.

                Tirania “como em todo gesto de sínteses”, a beleza, a estética são o passeio periférico inicial na teoria dos sentidos.  Periferias que já dão as coordenadas do centro, para, a partir daí, podermos nos reencontrar. 
                Extensão de detalhes, gozo perdido a partir de uma premiação da atração, uma sedução (Verlockungspramie).

                Não seria essa uma atração, uma sedução, uma hipótese na qual pensa o analisando encontrar nas “recordações”, na “posse” do passado, e, através de uma olhada, uma mirada, obter a apropriação do inconsciente, ao invés do “aproveitamento de uma oportunidade de aprofundamento na natureza do prazer”?

Encanto, estímulo, o “setting” é esse funcionamento.  Falamos aqui em uma função, uma ação de circo, montada a partir de um cenário, as cordas esticadas, e onde o externo/interno entra no titubear das imagens e os “grandes homens” dos ciúmes e das invejas são “o homem grande” de nossa infância.  Aí, embora não se reconhecendo como tal, não pode o analista duvidar que seu papel será como o de um palhaço.  Clown, funâmbulo, tentando um lugar de palco para outra cena, o analista é o lugar onde se ensaia, encena feitiços e magias que falarão sempre desta outra cena, a cena inconsciente, lugar voltado para o alegre, o prazer, a arte, a beleza, a urgência, a com-pulsão, onde tudo tem lugar e o sentido escorrega com o chiste para o gozo.  Palhaço, alegoria, menestrel, artista de primórdios, agora, e que deve perguntar sempre qual o seu novo papel, e honrá-lo, também, sempre através da possibilidade de acesso ao prazer que esse palco possibilita.
         
       Porque um outro olhar na direção dos inícios nos levará a ver que a condição de enigma que Freud sempre conferiu à hipótese se refere ao desatentamento do gozo que sempre está preso no sintoma e que fala uma língua a ser decifrada.  A nos atirarmos na “nebulosidade” de brincadeiras próprias da infância descobrimos a urgência e a falta dos tempos – “agora eu era herói”, dizem as crianças – e a mistura hipnótica do que é estimulante, encantador (reizend).  E por isso são as crianças que mais apreciam os circos e os palhaços.

                Amamos como os clowns perdidos nos festejos, nos festins de nossas origens, e visitamos todas as ”soluções” para o “amor” como um químico que olha as soluções com um olhar que vem da alquimia.
                Esse o amor de que fala a psicanálise, que sempre parte e volta às “pulsões orais mais antigas” e para o qual não há outra saída senão a presença do “canibalismo”, sempre presente na “cultura”.  Do banquete cultural, a “inibição” consiste no recalcamento de algumas pulsões e no acionamento consequente de outras que passivas, às vezes nos colocam com o olhar ativo do “assistente”.

                Se devemos suspender (Aufhebung) as pressões, os recalcamentos, as inibições, as leis, isso não significa eliminá-las (como querem as traduções), podemos fazê-lo no festim em que nós, nossos pais, nossos mestres, inclusive Freud, são “celebrados”.  A “solução” é dissolver...

                “Comer com o olhar”, sintetizar o que é permitido e ousar um “matiz na condução das resistências” (Abstufungen, des... Leitungswiederstandes), enfrentar o interditado, tolerar, desenvolver o trabalho de interpretação que a presença do outro como interditor ou acionador de nosso fantasma desperta em nós e lançar então o pontapé inicial (Anstoss) do nosso sonho.  Visão que é também um risco de devoração e perdição de referências, mergulho que é um ato.

                O acionamento do nosso “aparelho de pensar pensamentos”, ou melhor, do “instrumento da alma”, ou ainda, como querem as traduções adotadas, “aparelho psíquico” existe em ato.  “No início era do ato”, diz Freud citado Goethe.

                Algo que como “a conclusão de um túnel escavado de ambos os lados de uma montanha” junta o prazer dos inícios que envolvem as “correntes termos” a uma descarga vinda de “um excesso de exigência de uma experiência que, em outro contexto, outro ensejo (Anlass), outra constelação (Zusammenhang – que Lacan emprega no sentido dos astrólogos), pode desencadear um trauma.

                “Uma nova ação acrescida ao autoerotismo, dos gozos parciais, teatro e palco periféricos, festa, erogenicidade da zona, regiões a serem vistas (festas da visão), reconhecidas, sabidas.  Prazer anatômico, fisiológico do saber, sabor de passeio jubiloso da cultura pela curiosidade, pela geografia “corporal” e pelas corporificações e “corporações” do homem, gesto de inteligência, de compreensão na perda do sentido, ato de criação e apropriação corporal da história.  Gesto cego, perdição na “ardência da voz”, um gemido de gozo desde a filogenia até a ontogenia.  Corda de circo esticada na garganta, corpo retesado, tenso na inteireza de um ser, falando aí de um “mau ser” ou de um “mal estar” (Umbehagen).

                Filogenia e ontogenia até agora estranhas aos preciosismos da ciência e que lançam o homem a se perguntar sobre os verdadeiros desejos, aqueles que desencadeiam no sujeito os pro-cessos (Vorgangen), podendo ser eles de recalcamento ou de “suspensão” (Aufhebung) e que, independentes da “genitalidade”, são desencadeados sem se interessar por direitas ou esquerdas, vanguardas ou retaguardas, regionalismos ou universalismos, e são, sempre, de vida e morte, de homem e mulher, e levam o poeta a se perguntar desde o desespero da “mulher macia dentro da escuridão” e vão até uma “hominização”, cujas luzes estão sempre apenas a se anunciar.   
   
               O momento da criação, de distanciamento e singularidade é quando o homem se lança em um salto no vazio, no inominável, no que lhe falta, sabendo que ninguém vai lhe coletar “fatos” e que a história é feita de “acontecimentos”, de “sucederes” e que estes são acionados a partir de lacunas e não de textos, e não a partir de reconstituição da “realidade”, mas  a partir do que foi esquecido, do que está perdido no “corporal”, na corporação e na corporificação.

                Jogada narcísica que não é uma função de perversão “mas um complemento libidinal do egoísmo, do instinto de autopreservação”.

                Mergulho ao mesmo tempo no abismo da cultura, gesto de negatividade que nos permite encontrar com  o estado derramado das pessoas ditas “agradáveis” ou “simpáticas”, e que parecem examinar a história da “janela escancarada do presente”, de um gozo que é uma dádiva.

                O gozo da interpretação fala de “qualidades adquiridas pela compreensão, o que possibilita ideias de grandes intensidades através de descargas “in bloc” de ideias individuais”.  A síntese e sua tradução no sonho reporta a essas “qualidades capazes de desempenhos mais delicados (Leistungen)” e que, como na inauguração do pensamento, também atraem a consciência.  Somente que aqui essa consciência é dada em um sentimento de si, na multiplicidade dos “seres”.

                Uma vez que as tensões do sujeito são transformadas em extensões, e que seu salto na cultura é conseguido através de movimentos esteticamente aceitos, há um “partilhamento do prazer”.  – “Curtição” em que se lança o sujeito em busca de nomeação, prazer de início, afeto lançado a cada momento de entrada em cena, deparamo-nos aqui com um olhar curioso de todos, pois que um nome, não dependendo de uma legitimação cartorial, é luta contínua em que cada dia no dia a dia se religa essa curiosidade.  Para que não sejamos “esticados no curtume” numa estética da curtição seremos sempre levados a nos perguntar com Guimarães Rosa pelo “medo, coragem e gã (gana) que empurra a gente para praticar tantos atos e dar o corpo a suceder”...

                Que afetos (amores e temores) e que coordenação, a partir de que gestos, de que acontecimentos (Ereignis) dizemos possibilitar-nos no prazer e no saber que sonhamos, amamos, vivemos, enfim?

                Sabemos apenas que há um momento em que acionamos a atenção, a consciência, o pensamento.  Aí capturamos os sentires e os sentidos ou somos por eles capturados...      


Nenhum comentário:

Postar um comentário