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quinta-feira, 20 de março de 2014

SOBRE A FORMAÇÃO DOS ANALISTAS

SOBRE A FORMAÇÃO DOS ANALISTAS


Jorge de Campos  Valadares





O trabalho com a formação de analistas requer uma contínua reflexão por parte de grupo e instituições que se dedicam a tarefa. Hoje essa atividade fica mais complexa pela própria perda da força de algumas ideias no emaranhado das práticas da cultura e da necessária retomada da discussão do sentido da clínica psicanalítica.

A proliferação de Cursos tem necessariamente que se haver com o confronto das ideias, o que deságua, quase sempre, na competição. Não que as ideias tenham perdido seu sentido. É que parecem ter perdido sua força, na insistência em determinados temas, sem o exame do conteúdo dessa “repetição”. Para citar dois desses temas refiro-me ao “passe” e à “transmissão”. O tema do passe é tratado pela antropologia com um carinho especial e a questão da “transmissão” é estudada a partir de certas linhas da teoria da cultura, com base na psicanálise, de forma detida.  Não é que devêssemos abordar o tema sob o ângulo da banalização, pois que fugiríamos aqui do que é mais rico na própria psicanálise.   Não seria o caso de perguntarmo-nos pela insistência (Beharrung) para a qual Freud nos chama a atenção, no Totem e Tabu, e que nos leva a pensar em alguma esperança, alguma espera (harren), contidas nas ritualísticas e nas repetições?

                Parece, entretanto, incompleto pensarmos em um tema como esse sem considerarmos alguma teoria para a cultura como as contribuições da antropologia, a análise das instituições, as teorias da política etc.  Há um continente para o fantasma e para os conflitos na cena clínica e uma opção pelo enfrentamento das tensões no campo social.

Uma abordagem sob esse ângulo do problema implica no reconhecimento, por nós, de uma outra posição para o analisante.  É um cidadão que nos procura, nos chama para um trabalho para o qual há um tipo especial de ajuda.  E o faz da mesma maneira com que recorre a qualquer outro profissional.  Alguém, um especialista – não há como fugir disso, embora se possa reconhecer uma certa estranheza para esta especialidade – que, como o analisante, examina o “fantasma” e o percurso de seu desenvolvimento, a capacidade de simbolização.  Essa simbolização está ligada, a partir de uma “ordem externa” aceita, a movimentos emocionais iniciais que permitem uma comunicação da pessoa consigo mesma, e uma escolha, dentro de um material visitado, daquilo que é escolhido para ser expresso e daquilo que permanecerá na intimidade.

                Há, com relação à “ordem externa”, analistas com longa experiência clínica que têm insistido na desnecessária “divisão de classes” (Chebabi, Edson Lannes) que se impõe na relação com o analisante.  Uma “insistência” (Beharrung) inconsciente maciçamente imposta em ato, na suposição de saber atribuída ao analista. Mais uma vez o analista é um especialista, como uma função de ajuda especial cuja característica central é de ex-sistir, como lugar de prática, entre as quatro paredes do consultório.  É lógico que o analista não deve ser invasivo, como seu analisante, na cena pública, mas isso deve se passar na sua relação como qualquer um.  Porque essa delicadeza deve se acentuar com seu cliente? Deve essa insistência existir nos seminários?

                “Transmitir” essas práticas é uma ”impossibilidade” da pedagogia, ou da didática, na “formação”.  Sabe-se que lidamos com formações (Bildungen) e que as nossas formações inconscientes “incorporam” os nossos analistas, nossos mestres, supervisores, da mesma maneira que fizeram com nossos pais e fazem sempre com os líderes, “guias”, enfim, com os nossos ideais.  As formações do inconsciente, na cena da formação, devem “trabalhar” no delicado balanço de uma cena social que se situa nos limites da intimidade.  Basta, para que isso fique claro, que pensemos a presença do analista, do “supervisor”, em seminários teóricos ou clínicos durante o curso da formação.  Há, então, um momento de “informação” – de formação interna, prefiro dizer – no curso da formação em psicanálise como em qualquer outro curso.  Não se trata de “formar”.  Embora se forneça “modelos” – e uma visão global do percurso de Freud é um deles, e disso voltaremos a falar – o trabalho pedagógico é um “que fazer” (Ortega y Gasset, P. Freire), um diálogo sobre os caminhos da cultura.  Com relação a esse cuidado com a intimidade e à capacidade de se lidar com o íntimo na cena pública, talvez a psicanálise tenha muito a aprender com a “sabedoria” mais do que com as “ciências”, de outras práticas culturais.

                Há, ainda, o exame de “transferências” a serem viabilizadas na formação.  Transferências que fazemos para o texto da psicanálise e, em especial, para o texto de Freud (positiva e negativa).  Transferências para o texto de nossa própria análise (idealizações não resolvidas, pontos cegos, nódulos na prática clínica).  Transferências no âmbito do sintoma institucional, ponto de encontro do social com o interno.  Nesse aspecto anotaria somentenas ritualísticas em torno das obrigações de “apresentação” do “candidato”.  Todos esses “temas” – assim mesmo, entre aspas – são problemáticos.  A apresentação deve seguir um curso não controlado e a legitimação é apenas reconhecida, no grupo, independente de mecanismos institucionais rígidos.  O próprio participante sente necessidade de se apresentar, de ser re-conhecido pelos seus pares, de retomar filosófica e psicanaliticamente o “aparecer” e as “aparências” ao nível do grupo social e psico-social.  Oque vai re-colocar sentimentos internos profundos como, por exemplo, de jogo (Winnicott), “blefe e ridículo” (Fairbairn) em outra “formação” e retoma as questões de identificação (Freud, Lacan), de identidade (Winnicott) no “andamento” do convívio.  Do ponto de vista filosófico, as questões técnicas (Ortega y Gasset) sobretudo com o que se situa em ato, o que é “profundo” e o que é ‘superficial” (Merleau Ponty), também devem ser acompanhadas.  Como se tratam de ações situadas, de situações, a formação deve se preocupar, deve procurar, deve ter sua implicação e “concern”, com um acompanhamento mais no intuito de não atrapalhar uma caminhada do que com a fixação de espaços ou etapas a serem vencidas.  Deve re-conhecer onde “ouve”descobertas e interrogar onde a repetição encobre o novo.

                O trabalho, nessa perspectiva, para os coordenadores de seminários e programadores de currícula, deve ser parecido com o trabalho clínico, com a “consideração”, “concern” (Winnicott), uma perspectiva de “companhia” para uma viagem.

                O animador de seminários, o coordenador, ou como se queira chamar, é esse companheiro de viagem mais ou menos “animado”, conforme o tema, o seu próprio dia, e deve ser mais “presente” do que está na clínica.  É um companheiro.  A arte tentou trazer uma contribuição, em dois filmes recentes e magistrais- Sociedade dos Poetas Mortos e Cinema Paradiso – para a compreensão dessa “função”.  O termo, aqui no seu emprego circense, é mais conveniente do que no sentido orgânico, matemático ou de “serviço”.      
   
Outro aspecto central da formação é a análise pessoal.  Sobre ela a “formação instituída” tem pouca ou nenhuma influência.  Mas a quase totalidade da capacidade de uma pessoa saber o que lhe compete, ter competência – concern no atendimento – está ligada à análise pessoal.

                Quando ao curriculum, é importante, como disse, compreender a representação que alguma analista ou autor faz a partir do conjunto da obra de Freud: Teoria das Pulsões, Teoria da Cultura, Teoria da Técnica etc.  Mas deve-se ter presente que é uma visão de conjunto sobre a obra.  E que, como nos chamou a atenção Bachellard, todo modelo, toda ciência, mal se fecha, mal delineou o seu campo, tem sede de se abrir.  Assim, a geometria, que mal delineia a área, tem uma sede infinita de se abrir, pois uma reta só pode ser localizada com o auxílio das equações da álgebra.  A álgebra é a primeira abertura da geometria e, então, se estabelece o campo da geometria analítica.  A pré-tensão de uma “ciência” isolada em torno do trabalho de Freud – que, em síntese, é uma teoria sobre a capacidade de um indivíduo e do grupo se articularem a partir do sonho e do luto – não tem sentido nessa perspectiva.  Toda teoria é uma ficção teórica, um corpo de representações.  A psicanálise nos ensina que a criatividade está ligada à capacidade de associar que se pode ter a algum texto e a legitimação, feita no social, confere uma validade para essas associações.

                Mas a sociedade caminha e, com isso, se pergunta, hoje, por uma teoria do sujeito que não trate o “indivíduo” como um fantasma.  Há, é certo, uma divisão constitutiva, mas é uma divisão interna, e a sua presença social reclama por uma reflexão vitalizada que dê conta da situação, da ação situada, uma ação, portanto, em que ele é sujeito e objeto de análises.

                A instituição de psicanálise é um lugar público.  Um ponto de encontro e despedidas, onde se discutem linhas, “riscos” para a teoria.  Não é o caso de definir a melhor.  Ivan Ribeiro chama a atenção para um fragmento de Camus que nos diz no Sísifo: “Há muitas maneiras de saltar, o importante sendo saltar”.  Nas sociedades analíticas discute-se, entre seus membros em formação, a importância desse “salto”, que é, no fundo, um passo do interno/externo,do sujeito no social.

                Há um ensaio (Probeaktion) desse salto nas sociedades analíticas.  Uma situação social em que ele se dá.  A prática da formação acompanhando o “passe” pode dar conta desse ensaio, dessas tentativas.  

                Ele é dado, também, pela capacidade que tiver o grupo de suportar o conflito, as expressões de ideias contraditórias.  Assim como o analista, na cena clínica, não se assusta – pode ficar perplexo, tomado de espanto, como convém estar até, diante do aparecimento do novo – assim, no ambiente de formação que, como a análise, não termina, os conflitos são sempre bem-vindo.

                A massa são pontilhações de representações e identificações do inconsciente e de “lugares” para “cenas”.  O inconsciente é o lugar de identificações mais ou menos “atuantes” e “organizadas” por ideais atualizados com o eterno risco de se desconectarem nas desilusões.  Assim o grupo de formação, como qualquer outro, é um espaço provisório.  Aliás, Freud nos advertia: “O homem é um ser de horda, não de rebanho”.  Os “ideais” na formação, sendo “organizadores” atuais, não podem paralisar as “moções” que, vindas de dentro, têm ex-pressão conforme o espaço em que puderem atuar.  Também aqui como na clínica deve-se repensar o conceito de “passagem” ao ato e de acting-out.





O trabalho da formação analítica


                O artigo discute o “trabalho de grupo”, em instituições ou não, para a formação de analistas.  Trata-se, porém, de uma formação (Bildung), um trabalho feito pelo inconsciente do analista com o que lhe é colocado à disposição.  Nesse sentido sua análise pessoal é o ponto central e este trabalho de formação acompanha o trabalho do sonho e do luto.

                Partindo desse pressuposto – o de que há um trabalho individual concomitante e indispensável – podem a instituição, ou o “grupo de estudo”, ser um lugar, como convém sê-lo, onde é suportada a ex-pressão de conflitos, não deixando, cada um, de examinar suas transferências aos textos, à própria análise pessoal (pontos cegos).  A instituição suporta conflitos, como antes o analista fez a sustentação (holding) com o Setting de tensões internas.  Há “enredos” em que as “fabulações” possibilitam uma narrativa e, através de uma “mitologia”, observa-se um trabalho particular da cultura.  Uma atividade (Leistung) delicada, inicial, de elaboração entre o fantasma e o mito, que se dá em ato, uma mitologia – a das pulsões – é “passada”, e há uma re-acomodação dos conceitos, fantasias e fantasmas.

Uma questão é a recuperação do lugar do mestre na cultura.  A experiência da formação de espírito (Bildung) não é redutível a um curso, à “informação”, à leitura de programas de computador.  O mestre, além disso e para além das transferências, traz ajuda para uma “in-formação”, conta uma história.  História que sendo, no caso, a da psicanálise, fala de uma ontologia, uma ontogênese de como são formados os espíritos nas épocas, sem o que não se conseguirá falar de uma gênese do sujeito.    



       

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