PSICANÁLISE E CULTURA: PEREGRINAÇÕES EM TORNO DO TOTEM E DO FETICHE
(Jorge de Campos Valadares)
"E no entanto o ovo, e apesar de sua pura forma concluída, não se
situa no final, está no ponto de
partida."
João Cabral de Melo Neto
João Cabral de Melo Neto
Apresentação
Há uma continuidade entre as ideias e as cargas com que
colorimos o totem e o fetiche. Tábua de salvação, o fetiche é, no momento da
"necessidade", ou do "interesse do ego", ligado ao nosso
primeiro contato com o mundo, um lugar de ancoragem e de retorno ao narcisismo
e auto-erotismo, depositando como algum segredo, "fora" de nós. O
totem, mais ligado ao sagrado, lugar de ponte e "participação",
viabiliza, nas ritualísticas ligadas ao "social", ao simbólico e à
cultura, uma série de repetições que são vias de reencontro com o outro. Este
outro é, entretanto, o "estranho", a inquietante parte esquecida de
nós mesmos.
Em nosso cotidiano, o percurso pelas pequenas coisas, pelo
que é inevitavelmente parcial, é, também, fonte do singular na medida em que,
sendo lugar de exercício do imaginário, começa a terminar nas funções de
sobrevivência. As funções egóicas, onde o indivíduo realmente existe no mundo,
se iniciam pelas experiências de procura pela sobrevivência apoiada,
"encostada", na necessidade, na fome, no "instinto" de
reprodução. Aí a cada bocado ingerido, a cada experiência de busca, cada
percurso de "território", o sujeito passeia o deslocamento do matiz
com que colore suas resistências e, até a "presa", vai definindo o
conteúdo e a forma do que vai finalmente ocupar. A palavra Besetzung, com que Freud situa o conceito de investimento, tem, na
origem, o significado da ocupação da cidadela militar. Aí o sujeito vai definir
o que realmente preza. Na caminhada, o sujeito, não assujeitado encontra,
cotidianamente, o seu lugar, sua nomeação e a reafirma. Nas pequenas coisas,
porém, ele pode desaparecer, "esquece de si", e pode perder-se no que
se pode chamar de verdadeiro masoquismo: a autoanulação. Por outro lado, é
nesse parcial, nesse passeio pelo que é marginal a toda produção já consagrada
que o sujeito lança, “diabolicamente”, suas forças, podendo experimentar todo o
gosto – é pela oralidade que o ser inicia sua viagem de conhecimento dos
estímulos do mundo. Há uma assonância, a
ser verificada no texto freudiano entre Reise
(viagem) e Reize (estímulo,
encanto). Não podemos deixar de
considerar que o texto original de Freud tem como objetivo central nos levar a
perceber como desenvolvemos o “aparato da alma”. Este aparato vai constituir nosso
“psiquismo”, uma série de sensores, de “radares” erigidos nas perdições e em
voltas a um centro, a uma disposição, a um dispositivo, uma organização (Einrichtung) em que as “lembranças”
sempre “encobridoras” de outras, mais antigas, nos darão conta, como “rastros
de recordação” (Erinnenungspuren) do
que realmente nos agrada, nos deu prazer.
Este termo nos diz algo muito interno (inner), para o qual o radical cord,
em nossa língua, é mais adequado. A
tradução “traço mnésico” é falha, remete para uma conotação de marca, lesão na biologia, e
nos engana mais uma vez, quando faz corresponder spur a traço e não a rastro.
Não é ao sinal, ao traço, mas ao “vazio dos passos deixados na neve”,
precisou Freud.
O
fetiche vai, pois, fazendo o homem percorrer a sua desproteção inicial, tentar
abrir, colorir este vazio, talvez de forma apressada. Pressa originada na angústia, na
ansiedade. Seria aí, então, o fetiche,
um curto-circuito, e traria o sujeito de volta, no fascínio por essa
“descoberta”, esse lugar de compulsão diabólica, em uma “regressão” a pedaços,
ao material, ao ídolo, ao substituto do ideal que, este, em sua função
realmente salvadora, aponta caminhos de re-soluções. A desproteção se refere, originariamente, ao
desamparo (Hilflosigkeit), momento em
que nos encontramos sem socorro. O
recém-nascido humano, prematuro, é o único entre os animais que deve, por sua
inermidade, ao aparecer no mundo, reencontrar ora a necessidade de se lançar no
sonho, no pensamento e na cultura, ora, a “atração” dessas forças
desconhecidas, ou conhecidas em descaminhos, por mil caminhos percorridos, em
“pedaços” de perdição, em atos impensados ou pensados no nosso interior, em
amuletos que nos remetem a ritualísticas e a compulsões “demoníacas”. Todas as práticas estão “além” ou são a “outra
face”.* (Jenseits)1 de qualquer consciência e qualquer
julgamento. Lançamo-nos ora ao totem,
ora ao fetiche. Um contendo “rostos”,
lembranças encobridoras do outro. Se nos
ligando, através do trabalho de Eros, a sínteses, a imagens, nos desligamos de
outras imagens haverá não somente algo a ser sempre transferido, algo que ficou
de fora, mas, também, uma ultrapassagem, uma volta por cima (übertragen), algo que nos trará de
volta, para sempre em ato, não somente por estar “além” nesse desligar. Mas está aí também o que será o “outro lado”
(Jenseits) daquilo que é o nosso
prazer, nosso Eros, nossa síntese atual, reunião que constitui as imagens, as
identificações que servirão de apoio, de união, de “encosto” (Anlehnung), de anáclise para as
atividades do ego em um gozo, uma “vivência” atual de nossa história.
O
totem, esse lugar que remete ao que é “maior” para o homem, se não lhe é uma
solução, é uma oportunidade de dissimulação para os descaminhos do humano. A palavra solução vem da alquimia, passa pela
química, e se estende, daí, para todas as ciências exatas. Sabemos que para a problemática do desejo não
há solução, há dissolução. Investidos,
“ocupados” com nossa idealização dos pais, reencontramo-los nos líderes e daí,
a independência, apreendendo com todos os humanos que puderem merecer nossa
atenção, nossa inclinação. Antes disso,
porém, nos encontramos em torno do totem, em suas circunvizinhanças, em
peregrinações ritualísticas com os demais “pares” da cultura. Aí entramos na problemática do outro. Esse “estranho” que é inquietante e
perturbante e que, sendo outro, nos remete, em ato, a nós mesmos, a cada
“repetição” do ritual, das múltiplas identificações que a qualquer momento, na
medida da perdição, e da angústia que lhe é inerente, pode nos trazer de volta
ao fetiche. Essa tábua de salvação, esse
ídolo identificatório, essa idéia estagnada pode estar na repetição de uma
teoria, por exemplo, que, ao invés de ser fonte de soltura dos imaginários da criatividade, pode funcionar como uma
jaculatória e, daí, passar a um lugar de prazer compulsivo, na insistência no
sem sentido do desejo, ao mesmo tempo que no pânico, inerente à perdição.
O
homem está nessa perdição e pode, talvez pela sorte, simbolizá-la.
Assim,
o Platão do Banquete, onde somos
dirigidos para todas as etapas da evolução amorosa, é o mesmo do Livro V de A república2 onde encontramos
todas as ideias de genocídio. E, se não visitarmos a sua teoria como um
passo a mais dentro da cultura para a dissolução de nossos “ideais”, para a
construção de outros, como um lugar a mais de “tensões”, que se transformarão
em intenções, corremos o risco de transformarmos esses nossos ideais em ídolos,
em petrificações. Não há lugar para as configurações
eternas do ego. Seu destino é o
rompimento e nova “construção”. O ego
petrificado se deposita na condenação do fetiche.
Por
outro lado, a cultura caminha tentando equacionar seu mal-estar que corresponde
a uma falha, a uma imperfeição nos roteiros, nas teorias, nos enredos de sua
trágica. No momento do mal-estar algo
falha (Versagl) na cultura. Falha como um motor que “rateia”, nos lembra
Célio Garcia, chamando-nos a atenção para o outro sentido do verbo Versagen. Também nos caminhos do sujeito, nos diz Freud
em suas tentativas de falar daquilo que ficou no recalcamento originário, outro
algo falha. É algo, agora no campo do
sujeito, que não pode ser dito (sagen
= dizer) e que tentamos, repetidamente, insistentemente, reencontrar. O prefixo Ver,
em alemão, remete a essa insistência, essa repetição e a algoprofundo, algo
subterrâneo, como na sedução (Verführen). Isso é o que não pode ser dito sem se ser um
“mal-dito”, sem anunciar uma maldição. A
tentativa da filosofia de explicar, de esclarecer, de lançar luzes (Aufklärungen) encontra um limite. O desejo, o gozo primeiro e integral é
indizível e deve ficar no escondido.
Devemos,
pois, de um lado, lançar nosso olhar para essa criança “interior” que quer
frequentar mil caminhos, perdida, perversa-polimorfa, e que está dentro de nós
tentando “administrar” sua loucura. De
outro lado, é nessa tentativa que vamos encontrar o outro, a quem chamamos de
próximo, mas que não nos é semelhante.
Em sua estranheza e perturbação sinistras o outro nos aponta para o
enigma. Qual a saída para esse
desfiladeiro de identificações, de representações, de imagens que nunca dão
conta do que é destinado para sempre a ser mal dito ou indizível,
inapreensível?
Os
grupos, os pequenos grupos, os “grupos de trabalho”, no sentido de Bion2,
na medida em que falam do mal-estar, da insatisfação da qual Freud nos dá conta
quando se refere à psicologia das massas, tentam elaborar, trabalhar esse
enigma. Aí o ato ritualístico
possibilita uma contiguidade dos “parciais” dos descaminhos e, propondo ideais,
organiza caminhos, identifica ideais que, por sua vez, são também lugares de
aparecimentos, aparências (Erscheinungen)
e aniquilação.
Parece
ser destino do que é escondido e privado sê-lo até mesmo no interior das práticas
ritualísticas dos grupos quando há um reconhecimento, um conhecer de novo um
“outro” que nos remete, eternamente, a algo dentro de nós que será para sempre
único (Einziger Zug), singular e
jamais poderá ser explicitado.4
Mas que, na medida do reencontro no “outro” se revela como o que nos é
escondido ou inconsciente. Por isso esses
lugares, totens ou fetiches, são lugares de aparecimento ou de aniquilação,
lugares de risco ou do perigo que Freud diz serem nosso destino. O sagrado não permite uma aproximação e, como
o fetiche, pode ser um lugar de fulminação.
Nos
passos desse ritual perdemos, enlutamos, abrimos novos espaços ou entramos em
melancolia. 5 É preciso,
entretanto, considerar que a arrogante insistência de sermos, quando melancólicos,
a mais baixa de nossas identificações, vive, antes de mais nada, de uma força
contida na revolta. O maior dos piores,
mas o maior. Ao nível da cultura esse
“maior” se junta ao grupo dos “maiores”, transformando o grupo em seita. As pertinências são sinais de peregrinações
que fazem os sujeitos.
A seita, sendo lugar de “conspiração e
murmúrio”, é um sinal de perdição dos sujeitos.
No fechamento da seita o sujeito vai encontrar lugar para colocar o
“resto” em que se transformou. A
lamúria, o queixume do melancólico pode, pois, colocá-lo agarrado a qualquer
pedaço, a qualquer trapo mendigo, a alguma migalha deixada pelo outro e que lhe
serve ainda de esperança.
Dois momentos do texto freudiano
No
livro O homem Moisés e a religião monoteísta, 6 Freud nos diz, a uma
certa altura, antes do relato do assassinato de Moisés, que a sombra de Deus
caiu-lhe sobre a cabeça. O Deus único,
introduzido pelo faraó Aken-Aten, derrubara as formas politeístas anteriores, provocando
uma grande consternação. Mas esta
religião, com sua representação do mundo, unificando tudo o que ocorre na vida,
a partir da imagem do sol e de suas ações, possibilitou a organização de uma
grande mudança no espírito do homem. A
ideia teria fascinado ao homem Moisés que, então, se transformou em um
sacerdote da nova religião ou em um general do faraó. Havia um ideal a cujo serviço o homem Moisés
se colocou, e, com esse ideal, liderou seu povo.
A
sombra do Deus que caíra sobre Moisés, falando desse ideal, nos traz também
algo da organização da cultura, nesse momento sob as providências da
instituição religiosa, e se torna uma contextuação (Zusammenhang) atempora que retoma as imagens condensadas pai grande
– Grande Pai. Aí, o “homem Moisés”,
egípcio, funda e ao mesmo tempo é fundado, na medida em que toma uma nova
reunificação (Vereinigung) que, em
Freud, é o trabalho de Eros, da vida por excelência. O trabalho de Eros se refere, aqui, à consternação
sentida pelo homem Moisés, que o faz
voltar aos “pais grandes”, sua possibilidade de fluência na história,
reinventando-os desde Abraão, do faraó e do seu deus Sol, Aten, até já mais
adiante, pela obra da cultura, ao “outro moisés”, o de Israel. Assim, e só assim, podemos pensar o gesto de
nomeação e do complexo de reconhecimento.
Inaugura-se, em um momento histórico como esse, uma ideia em que a
transferência, sendo um locus de
condensações e de deslocamentos de imagens, de identificações, possa ser
favorecida pelas contextuações (Zusammenhang)
e pelos ensejos (Anlasses), o que se dá na dependência de um enredo, de uma
tessitura fermentada dentro do fato cultural como, por exemplo, as
ritualísticas. Não há aí uma
anterioridade senão a do “nascimento”, do re-conhecimento de que o trabalho de
Eros, da reunião, faz emergir, a um só tempo, o homem e a cultura,
re-inventada, e, então, com isso, uma certa “cultura” pode ser o sinal da vida
ou do suicídio do sujeito e vice-versa.
Freud também se renova no seu “Moisés” e se retoma com a questão da
atemporalidade do inconsciente. Não há
aparecimento de um sujeito sem alguma comoção da cultura. Assim devemos perceber a atividade clínica.
Nessa
linha podemos dizer que a interpretação tem o sentido dessa atemporalidade que
atravessa o “coito parental”, visitando os fatos culturais, a intimidade dos
grupos, horizontal e verticalmente, e situando o homem somo um sujeito
histórico derramado em seu cotidiano.
Esse
derramar se deve ao prazer e faz com que qualquer exame dos fatos só possa ser
efetuado a partir da “lacuna escancarada do presente”.7
Tentemos agora nos situar em outro
momento do complexo de nomeação. Se, nas
“perdições” da periferia do totem, como vimos no Totem e tabu, qualquer descoberta, qualquer movimento pode ficar
comprometido pela viabilidade de uma “posse” por espíritos os mais diversos, é
preciso que se percorram os caminhos das ritualísticas que levam ou que desviam
o sujeito do seu caminho para o centro, pois esse sujeito, na medida do seu
não-assujeitamento, não vem do centro, recitando suas jaculatórias. Para conhecermos os sujeitos, re-conhecemos
suas emoções nos efeitos dessas infindáveis cantilenas que trazem alguma performance sua e são “causa do desejo”
na cultura, dessas procissões que são verdadeiras “humanidades” dos deuses –
nas cidades gregas a alameda que conduzia aos templos principais chamava-se
“passeio dos deuses”. São as procissões
e passeios que, se cruzam nossos afetos mais remotos, desde o terror até a
alegria, vão, na medida di nascimento do simbólico, ao precipício que fica
entre o sujeito e a cultura e, “nas origens”, a “natureza”.
Podemos nos perguntar se nesses caminhos
periféricos há diferença, como nos mostra Bergman nos “Morangos silvestres”8
entre um interno e um externo, um arroto e um trovão. No momento do susto, do risco, essas
diferenças esmaecem e o sujeito revista inexoravelmente seu fantasma para a
retomada de um caminho. A cultura, a
cada ciência, a cada mística, o reintroduz na legitimação ou na exclusão; a
cada êxtase, ou a cada fantasma, conduz o sujeito, nas suas formas de
“expressão” ou do recalcamento do si mesmo e do outro.
De um lado o simbólico pode ser
sustentado, apesar de sua vocação para o encontro, pela privacidade de um
eremita, como o Santo Antônio das tentações, de Flaubert,9 mas, de outro lado,
esta sustentação, na medida da trágica em que se situa, está em incontestável
reciprocidade com o outro, de vez que Santo Antônio, em seu deserto, em sua
assedia, nos organiza uma nova noção ou “aproximação” de Deus. A mulher, por exemplo, nessa obra de
Flaubert, é a imagem do mundo, do precipício.
Tal fato aparece quando, do Santo, se acerca, em suas “visões” – que na
medida das tentativas, das aproximações, não são mais “alucinações” – a rainha
de Sabá. Famosa por ser a mulher mais
bonita e sedutora de todos os tempos e em pleno uso de todos os seus atributos,
ri, ela, soltamente, do eremita quando este diz ser, a mulher, a tentação que
ali menos espera, e afirma: não sou uma mulher, sou um mundo.
Esta noção é organizadora do princípio
da realidade. É diante do caos que
situamos, depois de lermos o que nos legado.
Aí o ideal sairá da noite e se colocará do outro lado ou para além (Jenseits), será transferido do lugar da
”sombra que cai sobre o ego” para “lugares” menos tirânicos que aqueles para
onde tem o olhar fixo ou melancólico.
Essa sombra,se deslocando no princípio da história, é o que pode re-situar
o sujeito na cultura. O texto do “homem
Moisés” recoloca, então, o texto Luto e
melancolia.10 O ideal
fixo deve se “deslocar” por uma nova organização (Einrichtung) da realidade. O
homem Moisés é a nova “figura” de pai, na medida em que, se situando por
referência ao faraó e ao seu Deus único, traz-nos, de novo, uma mitologia de
“origem” que remonta a Adão, Abraão, Isaac e a Jacó. Sabemos que não é de uma biologia que se
trata nessa “genealogia”. São as
relações com o criador que vão desde Adão, Abraão com seu filho, até Jacó, de
novo, com sua escada, suas ligações com o céu, embora saibamos, com o poeta,
que “El ciel azul ni es ciel, ni es azul”.
A sublimação não pode ser um trabalho
que despreza, pois, a regência de Eros, na reunião. Isto, na medida da “aproximação” de que
falamos, que “liga” Deus ao homem, o gozo da imanência, do real, no prazer do
“encontro”, da invenção da “criação”.
“Criação” que é a do mundo e do homem a um só tempo, e cuja expressão
máxima é a representação de Miguel Angelo na Capela Sistina.
A passagem da depressão para a
“elevação”, para a ”criação”, transformação da angústia em material de sonho,
de representação, de simbólico de novos encontros é mediada, pelo
re-conhecimento do percurso do humano.
Este reconhecimento, que é etapa de “passe”, de “nomeação” ou do
complexo de reconhecimento como o colocamos, implica em se experienciar o
percurso do humano como um percurso de homens de seres como nós mesmos, que se
ultrapassam ou se procuram, para além de suas idealizações e de seus ideais, e
se colocam, por isso, eles próprios, como ideais. Derrubaram eles os ídolos e escreveram com
suas vidas, com seu corpo e seu sangue – daí uma significação para os laços
totêmicos ao invés de laços de sangue – uma história, uma representação de
esperança, onde o homem poderia encontrar-se a partir de ideais espalhados
horizontal e verticalmente, nas diversas etapas históricas, nas diversas
geografias. Essas seriam as bases a
partir das quais o sujeito poderia alçar seus voos, elevar-se.
O “logro” do sucesso aqui é parte,
início de caminhada. Está na
identificação com o ideal que pode regredir à idolatria. Esse pedaço, essa parte, seria para o
sujeito, na sua descoberta, algo de novo, até então à margem, ao qual o sujeito
se agrega como uma tábua de salvação. Um
penduricalho, um fetiche, enfim, e, sendo parte, é, como dissemos, ponto de
partida.
Dizer mais é tentar “esclarecer” algo
que se dá nas sombras (aqui o aspecto positivo das “sombras” da melancolia
quando desaparecemos para nos descobrirmos no ideal. A submissão não é a este ideal mas ao seu
lugar, seu locus, para o qual a
“transferência”, com sua ultrapassagem, seu passar além, passar sobre – Übertragen – nos encaminha.
O que se dá nas sombras, lugares
prediletos do desejo, é, por outro lado, aquilo por onde escorrega, mais uma
vez, o fetiche. É aquela ação nebulosa,
que as teorias instituídas, de centro, empurram para a periferia e denominam de
“baixa extração”, marginal, lixo, dejeto.
Tomemos os exemplos da teoria. Às vezes nos dependuramos em alguma “verdade”
que é tábua de salvação, tentando colorir de explicações o universo, que é mais
do que “visões do mundo”. Sabemos das
ritualísticas e do envolvimento dos grupos nessas produções, nessas “salvações”
e da dominação dos sujeitos pela reprodução desses “enviados”, profetas.
Paralelamente o sujeito, que se
manifesta por uma “enunciação”, algo novo que vem com sua entrada em cena,
valorizando seu relato, seu sofrimento de mundo, parte de um “sentimento de si
mesmo” (Selbstgefühl), autoestima, e
inaugura seu narcisismo, a base do ego.
Essa construção do ego, que, já de início, “implica” o sujeito em “outra
visão”, ou mais, uma revisão de mundo, pode correr o risco de fundar nova
“egocracia”, uma política que “fecha” o grupo em seitas e o sujeito em
emblemas. De novo, o outro lado, o
medalhão que “logrou sucesso”.
Na clínica devemos estar sempre diante
da perplexidade em que a disponibilidade para a emergência do novo não deixa
espaço para as cristalizações. A
presença da angústia que aparece nos momentos de rompimento das cristalizações,
idolatrias, petrificações e que é sustentada, na cura, ora por um, ora por
outro, é a segurança de que a energia da pulsão fala da vida e que, aí, ela
pulsa.
Ninguém precisa, como Quixote, “soprar
continuamente a chama”, pois ela estará sempre “aparecendo” em diferentes
pontos e momentos da existência do homem.
Mas não podemos esquecer - também como
esse “primeiro romance”-, que a loucura de Quixote é ponto de partida. É a tentativa de “juntar”, no trabalho de
Eros, as andanças perdidas dos Cavaleiros. Ironizando a perdição, a “perturbante
estranheza”, chegamos com o fantasma – esse “truque para gozar” – e com o mito
– seu correspondente na cultura –, se não à esperança – que essa nos juntaria
em feixes, como no fascismo – à possibilidade de espera. Espera de transformação da ansiedade em
anseio, e de, em um “trabalho de grupo”, podermos nos encontrar, nos situando e
situando os momentos da história, das massas, dos povos.
O
ponto de partida. Pensamento e ação.
Partimos do ponto de vista de que as
situações da clínica não se desvinculam dos movimentos da cultura.
A criação, na atividade clínica, está
inserida em uma das múltiplas possibilidades de produção de subjetividade, como
situa Guattari. A produção da teoria é
um momento da cultura, e toda clínica está baseada em uma teoria, construída no
momento mesmo do “contato” verificado a partir da associação livre e da atenção
flutuante. Existe algum acordo,
explícito ou não, em torno do encontro clínico.
A grande luta da teoria é a explicitação desses “acordos” para que toda
a atividade clínica possa ser, no confronto social, legitimada do ponto de
vista ético. Por outro lado, as
atividades do “acordo” sugerem, na medida em que viabilizam enunciações, formas
de retomada das teorias, seguindo um caminho que, no confronto, situam a
época. Essas formas de retomada, às
vezes, não são explicáveis no campo do simbólico, mas passam através de um
trabalho, o qual Masud Khan11 situa na “mutualidade”. Esse lugar de enredo, junto com o trabalho da
arte e da religião, possibilita a localização do sujeito no mundo. Em um momento inicial, acreditamos, haveria a
possibilidade de uma montagem na qual as configurações egóticas não seriam
claras, as “representações” dos diversos lugares não permitiriam uma situação
de ideais. Não haveria aí um “ego ideal”
ainda, mas momentos ideais, vividos no nível narcísico de um sentimento de si
mesmo (Selbstgefühl). Seria um momento de ruptura e, ao mesmo
tempo, de procura de uma nova situação.
O sujeito, não se ligando ainda a uma imagem egótica, não estaria também
viabilizando a sustentação de um ideal.
Este ideal é erigido por uma síntese das identificações construídas na
história e se transforma em ideal de ego.
Há silêncios no consultório que correspondem a esse sentimento ideal, em
que o autoerotismo chega a fazer “formigar o corpo”, em um aumento do
sentimento de corporalidade, de presença, ou de habitação (indwelling) no sentido de Winnicott.12
Ao nível das “pertinências grupais”, das
participações, este momento pode ser vivido de duas maneiras pelo analisante.
De um lado, por uma labilidade de
investimento, não tem ele compromissos fixos ao nível grupal. As lideranças não se distinguem das
egocracias, nas quais o líder cristaliza seu lugar de ideal paralisando os
sujeitos. Os chefes, os pais e o
analista deslizam em terrenos sempre muito móveis. O laço terapêutico é frágil.
Há, de outro lado, uma excessiva
distância entre o ego ideal e a “vivência ideal”. Qualquer concordância com uma demanda de
transferência de sessão, solicitada pelo analisante, por exemplo, mesmo por um
motivo que pode ser muito defensável, pode ser vivida como abandono e,ao mesmo
tempo, conflituadamente, é sentida como gratificante.
Parte da “vivência ideal”,
essencialmente corporal, passa pelo ego ideal e daí vai ao ideal de ego.
Essa vivência ideal é fundamental até o
fim do percurso. Um ideal do ego é
destinado a romper-se na medida em que se vai cristalizando. A vivência ideal, um sentimento do “si mesmo
escondido”,13 não permite a ausência de movimento. O ego, ou melhor, o caminho do ego é um
caminho de invenções, um trabalho de arte na construção de um personagem cada
vez mais elaborado de uma história pessoal.
É um trabalho de sublimação a construção do próprio ego, mas uma
sublimação, um trabalho artístico altamente erotizado, como nos poemas de Santa
Teresa de Ávila. Essa construção do ego
é feita à custa de condensações e deslocamentos de imagens identificatórias.
O outro, entretanto, estranho sempre,
fica, às vezes, perdido nesses deslocamentos, e é lançado no mal-estar. Há relatos clínicos que, como em qualquer
obra da cultura, ouvem-se em silêncio, como o fazemos com o trabalho do luto e
com os queixumes do melancólico.
Assim, quando alguém se refere à
angústia do domingo à tarde, ao “paraíba” com seu rádio de pilha à porta da
construção, ao ônibus lotado de banhistas para o subúrbio – “o bonde que passa
cheio de pernas”, no dizer do poeta – produz, ou é por elas produzido, mais que
imagens. É o campo da angústia que as
circulações em torno do totem tentam resolver.
Quando dizemos que alguém é “de peso”
estamos nos referindo a um saber sobre a angústia, ou antes, a uma capacidade
de suportá-la esperando chegar à sua significação ou mesmo se dispondo a correr
o risco de nunca compreendê-la. Este
saber, aliás, não é uma “compreensão”.
Quando muito seria uma “apreensão” do sujeito diante de um sentimento de
si e do sentimento do mundo. Uma
expectativa paradoxal que não fixa um objeto.
A pulsão de domínio, a mesma que leva o
menino a morder o outro, a levar tudo à boca para um reconhecimento se desdobra
em vontade apropriação pelo saber. A
“apreensão” do sujeito, do não-assujeitado, o leva a construir o mundo com sua
degustação e construímos nosso sabor,14 do gosto que sentimos com o
mundo.
Mas, mesmo assim, ou por ser assim,
estamos diante do enigma. Como chegamos
– alguns não chegam nunca, se perdendo para sempre, outros se encontrando na
perdição – a localizar no mesmo ponto o ideal? Freud diz, já em 1910, e repete
até o fim de seus escritos, que algo ficou perdido na passagem da hipnose para
a psicanálise. Muitos enigmas foram
abandonados. A teoria da transferência
não dá conta de várias questões aí colocadas.
O fato de algumas pessoas serem hipnotizáveis, outras não, é um
exemplo. O trabalho de deslindamento
desse enigma não seria uma tarefa para psicanalistas “estritos”.
A perspectiva da clínica se, de um lado,
nos remete a uma necessidade de formulação do que fazemos, a fim de nos
apresentarmos socialmente, está sujeita a vicissitudes da pulsão e de
ritualística da cultura. Podemos nos
recusar a receber de volta uma pessoa que abandona e retorna ao seu trabalho
clínico repetidas vezes, mas não podemos afirmar, atribuir algum valor para
esta atitude. A mutualidade pode ocorrer
aí em várias formas de ação situada, e o trabalho artesanal da clínica pode
legitimar ou não esta prática. A partir
de uma perspectiva cultural, outras situações podem localizar essa como uma
ritualística de procura. O impasse vai
além. Determinadas situações que teriam
conotações nosológicas do ponto de vista clínico como, por exemplo, o caso da “implicação”. A “implicação” pode ser uma tentativa de
tensionar o cenário com a finalidade de o sujeito se sentir existindo e,
segundo Fairbairn, é um mecanismo do esquizoide.
Essa mesma implicação pode receber outro
status ao nível social. A luta política nos diz ser uma
revolucionária, uma “histérica” em uma fila da previdência social brasileira.
Existem ritualísticos, compulsões e
enigmas
O texto de Winnicott nos situa diante do
paradoxo da “apresentação” do objeto.15 Este deve ser apresentado de modo a criança
poder imaginá-lo como tendo sido criado por ela. O tema da não-invasão é um tema extremamente
essencial à clínica.
O “como” uma pessoa pode tomar o objeto
e transformá-lo em uma criação está no campo do enigma.
Podemos, por outro lado, situar um zelo
teórico com o tema da pulsão de morte na psicanálise que, desconhecendo a
pujança da “energia solta”, a desvitaliza.
É uma compulsão à teorização, uma tentativa de “esclarecimento” que nos
leva a um “sem fim” da reflexão daquilo que se deve passar em ato.
Poder-se-ia pensar, como se pensa nas
construções em análise em reconstruções? Pode o analista, na medida das
“formações” do inconsciente, entrar, como um objeto convenientemente
apresentado, no exercício de uma função paterna, por exemplo, que fez falta?
Creio que esta pergunta cairá, também, no campo do enigma. No caso de a possibilidade de alguma “falta
básica”16 poder ser suprida, ao nível do “real”, pelo analista, toda a
“elaboração teórica” em torno do tema está no campo da compulsão.
O analisante, que vem ao consultório
repetidas vezes, pode transformar esse gesto em uma compulsão, ou, partindo
daí, transformar esse repetir em uma ritualística de renovação, de escolha do
analista e das mudanças com que conduzirá sua vida.
A clínica: o lugar onde o zelo não é
compulsão
Sabemos que do lado da produção das
teorias tudo está ligado à pesquisa, e aí, a ulsão de saber, voltada para a
perdição em todos os caminhos, para identificações, pode ser sequestrada pelo
espírito “empreendedor”.
Nas análises vemos, infelizmente,
florescer o efeito dessa prática – mais uma vez um termo não adequado – através
do “analista Sherlock” pelo qual o furor
curandi traz um exemplo gritante.
Aqui, a base de uma fenomenologia, que prescreve uma descrição
pormenorizada dos acontecimentos clínicos, seria a precondição, na compreensão
do caso, para uma predisposição de abrirmos mão da teoria, diante da
necessidade da frequentação de um vácuo, inerente às manifestações do novo, na
clínica psicanalítica. Trata-se de outro
paradoxo. Para poder aparecer o
recalcado devemos nos deter em todas as vertentes, associações, fontes,
identificações. Distraídos na
ritualística das descrições, próprias da associação livre e da atenção
flutuante correspondente, somos surpreendidos pelo afeto. A teoria não deve vir antes, sequestrando as
moções pulsionais emergentes; no entanto, ela está presente, ao lado, apoiada
pela necessidade, pelo “interesse” próprio da “apreensão”.
Aquele “sistema” de trabalho visando à
contextualização (Zusammenhang) do
afeto é o mesmo que leva a um zelo excessivo, nas pesquisas feitas pelos
centros de produção das teorias para com as periferias, onde as verdades
somente são legitimadas, como dissemos, a partir da confirmação por aqueles
centros. O falso e a banalização se
juntam, levando os sujeitos a partir para um “esquecimento de si”, um
recalcamento que, mais que obra de passado, é nutrido pela atualização. O “esquecimento de si” vai desde uma
perspectiva masoquista autoanuladora até um êxtase que, no nascedouro da
simbolização, pode se processar através da arte ou do encontro religioso ou,
mais uma vez, de volta, no precipício do sujeito, em uma reatualização, como na
tragédia, de Efigênia, quando se é atirado à “humilhação, no frenesi, na
loucura”.17
Na perspectiva da prática cotidiana, na
cena social, o autoesquecimento acontece em cisões interno-externas como as
citadas por M. Claire Boons. A cada
inclusão corresponde uma exclusão: a ressituação do operariado foi conseguida
não somente pela transformação da rainha em figura de décor, mas também à custa da expulsão, do conceito de operariado,
dos operários do terceiro mundo, diante de quem os operários ingleses se sentem
como aristocratas. É uma integração que
depende de uma cisão. Estamos sempre
diante de uma “apreensão”, de uma compreensão que tensiona o sujeito até sua
cisão. A questão situa-se não em se
abrir mão dessas representações de todo, mas em sua contínua “reabertura” para
não cairmos no gesto totalitário.
Os
caminhos do ideal, interno, e do ídolo, externo ao sujeito
Ora, não podemos, então, examinar essas
questões fora de suas contextuações. O
termo freudiano Zusammenhang, que
Lacan traduziu de forma feliz como “constelação no sentido dos astrólogos”,18
tem alguma proximidade com o conceito de implicação de Masud Kahn19
e, nos dois, há uma certa ambiguidade. A
perspectiva é ora situada externamente, ora internamente ao sujeito.
A questão não seria eliminar essa
tensão, mas explorá-la: tentar, cada vez mais, deixar-se “tocar” por ela.
Essa discussão poderá retornar, de um
lado às questões das transferências, dos laços totêmicos, do ideal, “mais
fortes que os laços sanguíneos”20 – diríamos hoje, os únicos laços
–e, de outro lado, aos problemas do fetiche mais próximos do corpo, da
“idolização”. A transferência é um
ensaio, uma tentativa de confrontar o que fica entre a representação e o que se
passa com a utilização de outras tensões “compreendidas” pela cultura e que
nascem diretamente do corpo, no momento mesmo da incorporação, quando o sujeito
“ganha corpo” na contextuação.
Nos passeios, nas circulações em torno
do totem, do ideal, vamos desde sua “construção” (Bildung), sua formação, até
os bocados que, não-digeridos, não assimilados, restam, por isso mesmo, na
força do parcial, do “diabólico” – força determinada pela sedução do “marginal”
na cultura e pelo perverso da perspectiva da sexualidade – às vezes,
possibilitando a autodevoração, a fagocitose do indivíduo e da cultura pelos
mesmos ideais, agora transformados em fetiches.
É o custo e o risco do marginal, do metonímico, do parcial. Talvez, entretanto, por algum “dispositivo”,
em alguma disposição, organização (Einrichtung) próprias do Princípio da
Realidade Psíquica 21 – do sonho “compreendido” pela cultura, possam
as diversas emoções nesse marginal se fundarem em deslocamentos, se fundirem em
condensações nas quais, a partir daí, em caso favoráveis, o trabalho de Eros
vai ganhar uma extensão, ligando-se a uma atividade de “reconhecimento”. O sonho age a partir de uma plasticidade,
como em um trabalho de pintura ou como nas “encenações teatrais” das
ritualísticas que têm, também, sua tarefa nas contextuações, nos ensejos do
cultural. É o caso do sonho do paciente
Sato, de Lifton, 22 que mistura convenientemente uma passeata
marxista com um barco folclórico das procissões tradicionais do interior do
Japão. Sabemos como uma e outra, sendo
moções do sonho, contém elementos comuns, comunitários, presentes também nas
elaborações da cultura.
Sato, sendo um marxista tradicional,
fetichiza a prática política, se envergonha de suas origens e se “esquece” em
uma “certa” prática da teoria da história: a religião que retorna no sonho não
mais seria o ópio, e sim lugar de religações, “junta”, submetida que é a Eros,
à sua história, e traz o seu sonho de sociedade para fora da noite. A passeata, um acting out sonhado por Sato, traz dentro de si destino maior. Algo se dá, pois, em ato, na prática,
condensado no fetiche, como nos sonhos.
O sonho de Sato, vindo à análise, o salva de uma passagem ao ato e lhe
viabiliza o passe, a singularidade, a inteireza de sua vida.
A separação em “campos” científicos das
várias versões do saber como, no caso, as da teologia e da ciência da história,
é resultado, “vontade”, das formas de produção human, arbitrações do homem.
A questão do tabu e do ideal
O tabu implica uma insistência, “uma
espécie deconservantismo mental”, uma teima (Beharrung).23 Um
poder que continua a ser poder simplesmente porque foi um poder. Há um gesto de esperar (harren), pois nenhum monumento (Denkmal)
é constituído sem ser na origem uma esperança.
O gesto de repetição encontra aqui um anteparo. A violação do tabu transforma o próprio
transgressor em tabu. Essa “encarnação”
é um tema a um tempo do socius e da
clínica. Lembremos apenas que a
derrubada de um ídolo implica a existência de outro (rei morto, rei posto).
O tema do tabu atravessa o totem e o
fetiche. Nos dois, a interdição do
toque. Talvez no tabu encontremos
diferentes trânsitos do ideal que atravessam tanto o totem quanto o
fetiche. O violador que “toca” o rei, o
sacerdote ou os objetos sagrados transforma-se, ele próprio, em tabu. O violador da virgindade em sociedades tradicionais
é a um tempo fetichizado e totemizado pela cultura, mas os sujeitos cujo
“contato” com o violador é permitido recebem diferentes investimentos em uma e
em outra situação.24
A identificação, sempre feita com o
agressor, com o que vai ao encontro de algo, com o que é ativo, é dada no
incentivo à imitação à qual o rompimento do tabu conduz. Por isso o violador deve ser punido. O “traço unário” da identificação, o Einziger Zug, é conferido a essa
singularidade com que o sujeito entra no gesto e diante do que, na prática
social, vai constituir-se com o único, e objeto, ele mesmo, de cobiça e
identificações. Na clínica encontramos o
analisante perdido, sem saber quando calar, o que falar. Vê que alguns “temas” são tabus nos grupos. Vê pessoas discordarem e, em silêncio,
protestarem. Uma questão de situação do recalcamento
e da maldição, de algo poder ser “maldito”.
A errância (Abirrung), o ensaio
(Versuch, Probeaktion)
A tentativa (Versuch, Probe) e a
tentação (Versuchung)
O poder do tabu se deve a um contágio
pela posse de “algum atributo” que incentiva a imitação. Dois poderes do tabu: fazer lembrar os
desejos proibidos e induzir à “transgresão à proibição, em obediência àqueles
desejos”. Lembrança e tentação. A viagem pelas bordas do caminho, pelas
cogitações sobre a lei, pelos centros do “saber” sobre a falta são regressões
ao “tempo da completude”. As tentativas,
os ensaios de violação à lei, conduzidos pelos “rastros de recordação” de um
prazer originário, completo são, de fato, a tentação. Lembrar-se é ser tentado. Se quem não se lembra está condenado a
repetir, quem se lembra está tentado a fazer o “mesmo”; apenas, com o aval da
consciência, pode fazê-lo na sublimação.
Há uma lembrança, “um paraíso perdido”
convivido no nível da cultura, do qual o sujeito deve apenas apontar
sinais. Sua definição é tema do
narcisismo, para cujos riscos a arte aponta caminhos.
Fetiche: ponto de partida ou de
chegada ao gozo?
O fetiche, que poderia estar, por
exemplo, de um lado na idealização de uma teoria, ou do criador desta, e, de
outro lado, em uma tentativa ou em uma tentação do sujeito no sentido de
reconhecimento de verdades, concomitantemente ao seu próprio
desconhecimento. O desejo de
reconhecimento, se é um desejo25 de reconhecimento do desejo é,
antes, um desejo de reconhecimento de emoções ou de moções pulsionais
nascentes, tentando expressão. E podemos
localizá-las no sentimento de Deus, na perplexidade diante da história, como no
autoesquecimento do sujeito nos seus fetiches.
Porque não é sem emoção que se abraçam os “empreendimentos” teóricos,
políticos etc. por mais fetichizadas que sejam essas “mercadorias”. O movimento de análise institucinal, engolido
pelos seus próprios “mestres”, tentou um lugar mais honroso para a emoção. Hoje, depois de toda essa experiência,
falamos de “autodesrespeito” quando alguém “exagera” sua emoção em público.
O desejo de reconhecimento que ´, então,
como sabemos, a partir das “formações do inconsciente”,26 desejo de
reconhecimento do desejo, passaria por situações, ações situadas, atos, como as
“incorporações”, presenças e ausências das corporações e corporificações,
dentro da cultura, ao mesmo tempo em que erigiria ideais, os monumentos (Denkmals) internos. Freud usa o termo Denkmal27 para
se referir a algo interno-externo, no momento do nascimento do ideal do ego e
do superego. O gigante “irredutível” que é derrubado, ao crescer, pela pequena
criança nas suas diversas “dissoluções”, é o mesmo monumento (Denkmal) de nossa infância e se refere à
compulsão a obedecer nesses primeiros momentos fundadores do ideal do ego, que
se desdobrará – depois? – nas funções do superego e do ideal de ego.
Uma
palavra final para a angústia
A angústia acompanha esses
caminhos. É uma energia solta, que não
se liga a representações e resulta de tensões, na qual as imagens se conflituam
em função de identificações divergentes.
No extremo, pode-se seguir duas direções: enveredar corpo adentro,
enrijecendo o ídolo que mantém vivo, e, para fora, o que ela, a angústia, não
pode matar e antes, vicariamente, sustenta.
É o anjo guardião petrificado de um cemitério interno, fruto da
melancolia. Esta pode transformar o
corpo em um “pedaço” autoerótico, um fetiche, um lugar de exibição narcísica em
um narcisismo do desprazer, e nunca sairá do encantamento.
Poderá, ainda, como segunda opção, ser
“segurada” na procura de um sentido, pelo cotejo das palavras nos encontros
tangenciais com o outro.
Saída do corpo, essa energia desiste da
expressão literal e falaria das perdas experimentadas, já aí, na boca da carne
ou na carne da boca, tentando, na pressão, do “continuar existindo”, o
adiamento do sistema motor e a fundação do pensamento (Denkaufschub).28 A “língua”vinda desse buraco da carne seria a
ponte a ser lançada em direção ao outro, à vida, à história e à cultura.
Não somente, no entanto, na palavra, nos
ensina Julia Kristeva,29 pois se nos “recusamos” à transformação
dessa angústia de desamparo em agressividade, resta-nos, ainda, a arte como
ponto de encontro com o outro,sempre à nossa espera, nas manifestações de
solidariedade inter-humana, nessa praça pública que é a cultura.**
NOTAS DE RODAPÉ
·
* Aqui Freud coloca a questão das tensões
internas que cindem o homem sob doid trabalhos: o de ligação, relativo a Eros,
às pulsões da vida, e odo desligamento, a pulsão da morte. A pulsão é a mesma. Uma é a outra face, o outro lado da outra..
·
1 FREUD,
Sigmund. Jenseits des Lustprinzips.
Londres, G.W. Imago Publishing, 1947, p. 2 – 69.
·
2 PLATÃO. La republique. Paris, Flamarion, 1966, p. 203 – 237.
·
3 GRIMBERG, Leon et alii. Introdução às ideias de Bion. Rio de
Janeiro, Imago, 1973, p. 35.
·
4 LACAN,
Jacques. L’identification. Paris,
Mimeo, p. 37 – 40 84, 1962.
·
5 FREUD,
Sigmund. Trauer und melancholie.
Londres, G. W. Imago Publishing, 10:428 – 446, 1948.
·
6 FREUD,
Sigmund. Der Mann Moses und die
Monothetische. Londres, G.W. Imago Publishing, 16:103 – 246, 1984.
·
7 PONTY, Merleau. A crise do entendimento. São Paulo, Os
Pensadores, Abril Cultural 1984, p. 29 – 46.
·
8 LANNES, Carlos. Notas de seminário no círculo psicanalítico
do Rio de Janeiro. 1985.
·
9 FLAUBERT,
Gustave. La tentation de Saint Antoine.
Paris, Flamarion, 1967, p. 69.
·
10 FREUD,
Sigmund. Trauer und melancholie.
Londres, G.W. Imago Publishing, 10:135, 1948.
·
11 KHAN,
Masud. “Enfance, solitude et folie”. Nouvelle
Revue de Psychanalyse. Paris, 19:178, 1980.
·
12
WINNICOTT, D.W. “Fear of breakdown”. International
Review of Psycho-Analysis. Londres, 1974, p. 103 – 107
·
13 KHAN,
Masud. Le soi caché. Paris,
Gallimard, 1976, p. 105.
·
14,
BARTHES, Roland. Aula. Cultrix, 1980,
p. 21.
·
15,
WINNICOTT, op. cit., p. 104.
·
16
BALLINT, Michael. Le défaut fondamental.
Paris, Payot, 1971.
·
17 KHAN,
Masud. “Meurtre, frénésie et folie”, Nouvelle
Revue de Psychanalyse. Paris, 21:225 – 233. 1980.
·
18 LACAN, Jacques. O mito individual do neurótico. Lisboa,
Cooperativa, editora e livraria, 1980, p. 55.
·
19 KHAN,
Masud. Le soi caché. Paris,
Gallimard, 1976, p. 42, 285, 286, 377.
·
20 FREUD,
Sigmund. Totem und Tabu. Londres,
G.W. Imago Publishing, 9:7, 1948.
·
21 FREUD, Sigmund. Formulações sobre os dois princípios do
funcionamento mental. Rio de Janeiro, Obras completas, Imago, 12:273 – 277,
1969.
·
22 LIFTON, Robert Jay. O futuro da imortalidade. São Paulo,
Trajetória Cultural, 1989, p. 250.
·
23 FREUD,
Sigmund. Totem und Tabu. Londres, G.W. Imago Publishing, 9:34, 1948.
·
24 FREUD,
Sigmund. Totem und Tabu. Londres, G.W. Imago Publishing, 9:59, 1948.
·
25 LACAN,
Jacques. “Les formations de l’inconscient”. Bulletin
de Psychologie. Paris, 12:23. G. d’étude de psychologie de l’université de
Paris.
·
26 LACAN,
Jacques. “Les formations de l’inconscient”. Bulletin
de Psychologie. Paris, 12:23. G. d’étude de psychologie de l’université de
Paris.
·
27 FREUD,
Sigmund. Das Ich und das Es. Londres,
G.W. Imago Publishing, 13:237 – 289, 1947.
·
28 FREUD, Sigmund.
Die Verneinung. Londres, G.W. Imago
Publishing, 14:9 – 15, 1949.
·
29 KRISTEVA, Julia. Sol negro. Rio de Janeiro, Rocco, 1989,
p. 25.
·
** Trabalho apresentado no Círculo Psicanalítico
do Rio de Janeiro.
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