PARIS:
LEMBRANÇAS DE UM TEMPO JOVEM
Jorge de Campos Valadares 1
Tenho, sistematicamente, “deixado para depois” lidar com as coisas do 67/68 e com as
voltas àquele tempo, inevitavelmente sempre ocorridas, em papos com os amigos,
pelo que significou para mim e para todos, no mundo.
Já me
perguntei porque decidi mudar para lá, naquela época. Seria para estudar? Para pensar meus
antepassados portugueses, franceses? Para me dar um tempo, depois de um período
de uma análise pessoal que havia me revirado pelo avesso? Para dar curso a
minha travessia de um engenheiro para um psicanalista? Para “otras
ingenierías”, como disse o poeta? Para tudo isso? As razões que me colocava
naquela época eram muito prosaicas para serem verdadeiras!
Recorrentemente,
quando penso em Paris daquela época, me vem uma imagem: sentados nas escadarias
do Instituto de Urbanismo, olhando para a Rue
Michelet, ali, bem na frente de nós, minha grande amiga Marlene France,
arquiteta, a estar também deixando tudo no Brasil, e eu. Tardinha de outubro, rentrée universitaire de 1967.
Olhávamos o tempo e pressentíamos dias diferentes para nós. E não seria diferente somente para nós. Tudo era muito estranho... Não conhecíamos os
hábitos, mas sabíamos que havia algo diferente no ar, além dos aviões da Air
France... Já havia sentido esse ar em Nova Iorque , por onde havia passado antes de
chegar a Paris, em um voo triangular, comum naquela época, como fazíamos todos,
com mais 100 dólares acrescentados ao preço da passagem.
O mundo
estava anunciando mudanças... em 2006 meus alunos de Mestrado e Doutorado na
disciplina “O Grupo e o Sujeito” chegaram à conclusão de que devemos fazer luto
de um tempo que já se foi... não mais a “belle
époque” ou a “Rive Gauche” ou não
mais o dito pelo poeta e a estar “à sombra das bananeiras, debaixo dos
laranjais...”
Assim,
na rentrée/67, de repente, os colegas passaram a me chamar não mais de Monsieur Valadarez - o que me soava
muito esquisito, pois muitos deles eram um pouco mais velhos do que eu – e,
ainda, com um acento carregado e fechado no “êzzs” em um final inusitado para
meu sobrenome. Eu era, agora, Camarade Valadarez, com o mesmo
“êzzs”. Aquela mudança, tão rápida, para
um menino roceiro, parecia coisa a se olhar esgueirando... e com alguma
“cisma”: uma gente muito esquisita mesmo... era o começo de um longo trabalho
de desidealização... Em fins de 68 eu já era, de novo, Monsieur Valadarez... Tudo havia terminado. Mas deixara, em todos, marcas profundas.
A
França para mim era, até então, a França da Aliança Francesa, a França de
Sartre, Simone e Merleau-Ponty... e, é claro, também a França do ginásio...
Napoleão, Josephina... Desirée... e, antes, os Luises... Maria Antonieta...
Richelieu... Danton-Marat- Robespierre... e Molière, Racine, Proust, Molière,
Baudelaire, Feydeau, Montaine, uma saladfa, enfim, de onde o ocidente havia
tirado uma terceira ou quarta epifania...
Na École Pratique d’Autes Études, onde
estudei Ecologia Urbana, lembro-me da matrícula... A secretária me disse que a
concorrência era forte, e que eu trouxesse todos os títulos, com tradução
juramentada. Já os tinha levado assim,
do Brasil. Mas todos?! Mesmo o de um curso
de granulometria de areias para pavimentação de estradas, que o Diretório de
Estudantes da minha querida Escola de Engenharia da UFMG tinha organizado, com
a finalidade nobre, mas que fazíamos, como a muitos outros, para engrossar
currículos... alguns se formavam com 22 anos... a Universidade e a burocracia
francesa não era tão diferente: “ils
avalent du papier, monsieur”: e eu fiquei três dias deprimido...
Mas,
nada que me impedisse frequentar todas as manifs
– nome que se dava as manifestações, que pipocavam “partout dans Paris”. Aliás,
os nomes, na gíria, eram todos abreviados: fac
de droit, fac de science po, philo, restau u, que, dito muito depressa, me fez demorar a descobrir se
tratar de restaurante universitário... maravilhas que eram abertas em todos os
bairros, pois o acesso era livre a todos os estudantes, em todas as
faculdades... não importando a sua faculdade de origem.
Outro
curso que fiz, paralelamente ao do Insti
d’Urba, também com muita luta para me inscrever, foi o do Atelier d’Urbanisme Tony Garnier, da École de Beaux Arts, na Rue Bonaparte. O que passei por ali dá para escrever um
livro inteirinho... Tudo era feito “en
Charrette”, expressão medieval para significar pressa, no sentido antigo a
dar conta na entrega iminente de projetos, pelos arquitetos, ainda a pincelarem
os retoques finais... com a carroça na porta, esperando... Charrette, charrette, diziam sempre... Ali, no lindo pátio, a cour d’entrée, se imprimiam os cartazes,
os affiches, que eram pregados em
todas as ruas da cidade, à noite... e com muita charrette... os policiais, os chamados flics, estavam por toda parte, e diziam circulez, quando encontravam mais de dois conversando... Um dos affiches, muito bonito, trazia pintada
uma hamac, uma rede, sustentada por
uma vara cujas extremidades se apoiavam nos ombros de dois estudantes, com um
ferido dentro. Havia em cima os dizeres:
La chienlit c’est lui. O General De Gaule havia desenterrado esse
termo medieval para significar máscaras de disfarce de carnaval, fingimento, e
cunhado a frase: La chienlit c’est fini...
E, para os estudantes, a ordem era o que estava escrito nos muros, por toda
parte: c’est interdit d’interdire...
Guardo alguns desses affiches. Outros deles repetiam a frase, também de De
Gaule, que, como em todos os momentos dos regimes de força, e apesar do que
acontecia em volta, diziam, a ordem reina.
Aqui, ouvimos nos momentos da ditadura: “reina calma em todo o
país”. Nós, que visitávamos os amigos
presos, sabíamos que tudo era muito diferente...
Lembro-me de uma professora de geografia que entrou, lá
no fim do Anphi, para dar
sua aula – ela era extremamente reacionária, com seu nome da nobreza, salto
alto, fazendo um toc-toc inacreditável, casaco de pele
finíssimo - e gritava c’est
fini la pagaille... quase igual ao general... para um colega do Senegal que
discursava sobre o método da educação colonial francesa em seu país. Esse
colega nos dizia, naquela ocasião, que as cartilhas de alfabetização francesas
ensinavam às crianças negras de lá coisas como “les gaulois, nos ancêtres”...
ancestrais louros de olhos azuis, ali, só se fosse para enlouquecer... porque
não se tratava somente de transpor material da França, por economia... A
dominação e o colonialismo sem muita perversão...
Dali, daquela aula que, é lógico, não foi dada, saí para
uma passeata, uma manif,
que foi espalhada por batalhão da polícia, a virem armados com seus cassetetes,
gás lacrimogêneo, armaduras transparentes etc... quando ganhei um petardo no
joelho... corri não sei como... só pensava na ameaça do presidente De Gaule de
que todos os estudantes estrangeiros pegos em passeatas seriam
imediatamente devolvidos ao país de origem... E também pensava na cara feia em
cima de um pescoço ausente do General Castelo Branco... era um pesadelo que me
deu força para escapar... Um colega brasileiro, depois, me pedia: deixa eu
dizer que isso aconteceu foi comigo... Tudo era sério, mas com humor...
No meio de tudo, subíamos nos gradis dos prédios, nos
monumentos, para melhor fotografar as manifs...
tudo na maior ordem... o pessoal da saúde todo de branco... o pessoal da
química, com seus aventais, havia largado a fabricação de coquetéis molotov em
garrafas de vinho...
O discurso dos grandes líderes como o Daniel
Cohn-Bendit, líamos depois, nos jornais...
Tudo era muito sério, e também muito extravagante.
Era um tempo jovem... de muita alegria, muita tristeza, muita emoção.
A universidade ia ser transformada em entreposto, para eliminação de
intermediários na entrega de produtos agrícolas. E eis que, então, os
padeiros de paris entraram em greve e francês sem pão... jamais de la vie. Mas, o
sonho do fim dos preconceitos, de acabar com os sans papier, com a chegada do
elogio à diferença ficou... e em muita gente!
Foi um tempo para muita recordação.
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