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sábado, 16 de abril de 2011

SUJEITO: CORPO, GRUPO E ANGÚSTIA

Sujeito: Corpo, Grupo e Angústia. 

Jorge de Campos Valadares

Fui, pela manhã, ao Hotel, depois de ter assistido às apresentações de ontem  e à  primeira mesa de hoje e, pensei  que, para as minhas primeiras palavras serem melhor aceitas, deveria eu encontrar, antes, um caminho. Vi que corria o risco de trazer a impressão de pieguice,  de uma coisa afetada demais. O texto tropeça no afeto da angústia, que não consegui afastar em sua preparação. E também não queria este afeto falsamente distante, pelo socorro prestado por uma pré-tensa teoria adrede preparada. Senti–me socorrido, ao me lembrar de um verso do Goethe, na abertura do Fausto:

“Venham imagens claudicantes, enevoadas. Dessa vez quero ver se seguro vocês”.(Er kommt sie noch wieder schwankenden Gestalten...), se meu pobre alemão não me trai.
.
Goethe se referia aqui as imagens da adolescência, quando o corpo e seu desfrute, exigem, também  a dor do abandono dos colos da infância. Minha adolescência foi vivida aqui no Rio Grande do Sul, e tive um acolhimento humano importantíssimo em minha vida, e venho  solicitá-lo, de novo, para apresentar uma sempre adolescente disposição, necessária a toda contestação. Agora quero contestar   à maneira com que os afetos são tratados na teoria psicanalítica.1[1]


Vou começar. Vamos aos riscos:


... ce que l´Autre veut, ce qu´il veut même s´il ne sait pas du tout ce qu´il veut, c´est pourtant nécessairement mon angoisse.
Jacques Lacan. Seminário X, pág 211.

Quem doma a pulsão de doma?
Emmanuel Carneiro Leão.



Partamos deste início que já é, em si mesmo , um fim.

Como poderíamos aliviar em nós mesmos, essa angústia ao pensar nosso trabalho e o que produzimos? Sabemos que no trabalho psicanalítico, se o analisante não se angustia, o analista necessariamente deve faze-lo. Quero dizer, como os ingleses, então,  como  “make our days more easy passing”? Isso, significa , em nosso trabalho cotidiano, de atravessar nosso mundo interno, convivendo ao mesmo tempo  com a clínica e com o mundo? Com nossos grupos de colegas? O mundo do espetáculo é inimigo da angústia.

É o convívio dessa questão que proponho a vocês.

Freud nos socorre no seu Inibições, Sintoma e Angústia, ainda a  tempo,  já nas notas finais, quando acrescenta um “complemento sobre a angústia”, dizendo: O  malcriar uma criança pequena tem a conseqüência  indesejável de acrescentar, além de todos os perigos, o perigo da perda de objeto. A palavra que traduzimos por “ o malcriar” é Verwöhrnung . Gostaria, mais, de dizer desabitar, tirar, de um ser,  a habitação no mundo.  Wohnung em alemão é habitação. O prefixo ver indica ação insistente.  A perda da capacidade de ligar-se, de amar, de estar sendo, no mundo, sempre reinventado, tenhamos a coragem de dizer: esta sim,  a ser verdadeira habitação no mundo é a real preocupação do texto freudiano.
 Mais que um texto de ciência, o texto freudiano  é um texto de poesia, de arte. Sobretudo, se não denegamos sua Obra de Cultura, para ser lida antes de tudo.  Ela é um esforço, no entendimento daquilo a ser a habitação.  Agradeço a um outro esforço, o de Martin Heidegger, essa possibilidade de poder  ler, dessa maneira , o nosso imenso  fundador. Para Heidegger construir, habitar e pensar são uma e mesma e só coisa.

Dito isso, quero lhes dizer, ainda, e  portanto, de uma vontade minha de manter longe de mim o estar aqui, desabitado. Quero estar muito próximo de vocês. Para a transmissão do que tenho a dizer. Habitando e habitado por esse nosso encontro. Não acredito que o que tenho a lhes dizer está fora de uma clareira -  no sentido heideggeriano, Lichtung -   a ser aberta, uma outra geografia, outra espacialidade, em direção a outras temporalidades, isto é, uma outra história, para nosso trabalho. Os mineiros gostam de História e de estórias, onde as clareiras, como na floresta, são clareiras, mesmo quando faz noite:   
O Rio Grande tem sido uma de  minhas habitações, já desde minha adolescência , quando morei em Cruz Alta, nos três primeiros anos desta fase de minha vida. A abertura deste estado, na fronteira de três paises limítrofes ao nosso, abre de tal maneira a alma gaúcha, que a faz um “onde” encontro muito repouso. “Meu tempo é quando” e “meu lugar é onde”, assim dizem os poetas.  Falo portanto de habitação, de hospitalidade, no sentido de Derrida, mas falo também de algo indizível como as maçãs a serem o presente de Zola, a Cézanne, na infância escolar, quando este esquece, sua merenda, o que faz, depois, ao longo de sua vida,  Cézanne pintar quase compulsivamente, maçãs. Ele dizia: o que eu quero é  pintar aquelas maçãs do Zola. Primeiro sentir, depois pensar, ensinou Cézanne.
Quando digo que aqui encontro habitação quero falar em proximidade, em uma possibilidade de presença, a partir de acolhimento de diferença, no conflituado viver dos afetos,  de um cuidado com eles,  aquilo que Freud, chamou de atenção (Aufmerksamkeit). Essa a atenção que solicito agora  para comigo, condição única para comunicação, e,  de depois podermos  flutuar em um olhar mais solto, flutuante - essa um outra atenção, mais delicada,  dizemos,  para o que se passa, na clínica, e no mundo de nossas vidas. Haveria mais cuidado, com a atenção flutuante? Dispensa ela a atenção da presença do  “outro” cuidado?
 Estou, já desde o  início,  falando de grupo, desde este grupo daqui, onde ouso me colocar como um intermediário, no sentido de René Kaës um “porte parole”, ou de Pichon Rivière, um porta voz. É lógico que na medida do sentir  os olhos de vocês, a estarem  como ouvidos deslocados,  sinto  minha boca também se transformar em seus ouvidos. Como na obra de Jeronimus  Bosch. Uma demanda meio surreal, mas como disse Lacan, como toda demanda,  uma demanda de amor...e na medida que falamos tentemos não transforma-la, não vivê-la como exigência...se não for, hoje, uma exigência de um quantum a mais de amor pelo esforço impressionante desse grupo, o da APPOA – este congresso somente pode ser preparado com muito afeto - e também pelo mundo, é claro. Não me sentiria, entretanto, despedaçado, ao me transformar em tantos pedaços, mas, me sentiria parte de um quadro outro, de integração: aqui e agora. Como dizer o que quero sem ser excessivo?  Será  ir descobrindo, se possível,  em mim e em outros as funções de porta-sonho, porta sintoma... porta palavra...na linguagem de René Kaës?


 Essa a vicissitude primeira  do afeto:   aquele  a aparecer somente  em estado puro, como aquilo que é mais primordial, como fragmentário, despedaçado, e que  tem sido  trabalhada por  Daniel Stern, pelo úngaro G. Gergely, e por  René Roussillon. Eles  têm trabalhado as ligações iniciais a partir de uma certa aproximação do objeto a,  desobjetivado, se assim podemos dizer. Emoções, eles dizem.  Trata-se aí de um afeto, uma energia excessiva vinda e indo a um salto  no abismo – na Verdade? tenativa de Absoluto? Abismo, digo, para empregar o termo Abgrund – “im Abgrund wohnt die wahrheit – no abismo habita a verdade.”  do poeta Schiller ao se referir a verdadeira habitação da verdade, estado de estar sem chão, sem fundamentos – e, portanto, longe de fundamentalismos - sem origem: é donde vem a capacidade de abismar-se, de perplexidade, forma inicial de ligação com o mundo. Salto do seio acolhedor  como resto, no corte do mundo, em direção ao submundo,  ao mundo interno,    o i-mundo, os afetos iniciais, saídos da angústia de abismo:  de ódio, raiva, medo e depois, inveja, nojo...  sonhando daí sair. 
Para isso o analisante  foi à consulta,  como o dito pelo jovem paciente de Rossillon: “somente tenho me detido em odores....havia um odor  ...  que vinha do andar   de baixo ..um café e uma cremaria... o que me lembra  minha mãe a chegar empanturrada de...café com leite...no hospital onde eu estava doente”. Nessa geografia mais palpável,  o afeto no empanturrada. Aqui fala mais a angústia. Cheia de vazio, plena de conflito.
De qualquer maneira o afeto, vem dos órgãos dos sentidos, do corpo a se ligar com o mundo. No meio do abismo, uma outra criança,  paciente de Gergely, encontra uma habitação, uma clareira, um tempo em sua clínica, para ser acolhida naquilo  da função materna ablactante, - ele diz aprender clinica de crianças, com mães mais comuns – que   ajusta” o desespero excessivo da criança, em tumulto, convulsão. Essa função se ajusta, numa espécie de festa quase excessiva da mãe, “falando” , quase especularmente, com gestos, em uma ação teatral, do aguardar, enquanto em um  salto, empreende uma providência relativa a uma ação específica apaziguadora, como, por exemplo,  ao trazer alimento para a criança a gritar. Uma atenção específica, uma experiência de satisfação...outra vez, uma vivência de desamparo, expresso no afeto excessivo outro “ajuste” – ao mundo, com outro afeto, menos ostensivo? -  uma atenção especifica, o uso de objeto que apresenta alguma temperança, na soltura do afeto. Alguma vivência de tranqüilidade, paz, e, posteriormente gratidão, pela economia do transbordamento, e desamparo.
Repita a brincadeira, pede a criança. O que quer  ela, na repetição , às vezes quase a  nos enlouquecer? ...  Ali, daquela temporalidade a ser criada,  é um afeto solto, em clareira, uma  disponibilidade...mas para ela...poder aguardara a partir do acolhimento de algo insuportável, demoníaco. Seria isso o quando e o onde dos poetas?   Teríamos nós, quando temos tantos dispositivos, tanta disponibilidade?  Há, então ,  um  ritual, no sentido da antropologia, ... uma vinda a clínica, um insight...não como uma gratificação, mas como uma dádiva que aparece desaparecendo, revela, velando...uma quantidade de afeto que, reduzida, estimada em seu enevoamento, no acolhimento, e depois,... somente depois....na teoria... pode-se delinear uma marca de repouso, de habitação, de espaço habitável: eis aí algo a se repetir cada vez diferentemente....eis a própria Vida. Nossa clínica faz parte de nossas vidas.

O olhar e a construção das teorias sobre a vida, sobre a cura e sobre a clínica.

No mundo, e em estado do absorção, meio vendo, meio distante, na disposição em que Lacan situa a problemática do olhar, aquela a ser a da fascinação- ainda aqui o corpo, e lembremos que fascina é pênis – fascinação, um ponto intermediário.  É aí,  onde toda substância subjetiva parece perder e se absorver, sair do mundo, do mundo do mesmo,  aí está  a função do olhar. Mais tarde, poderemos ver que a vontade de ver, vem com a pulsão escopofílica, também habitada pela pulsão de saber e, ainda, tributária da pulsão de domínio, a Bemächtigungstrieb, que Freud diz não ser uma pulsão sexual...
Voltando, ainda,  a Lacan, diríamos que a função escopofílica, vejamos o seminário de 15 de maio de 63, onde a questão  olhar, le regard, é esse trabalho do –phi, o masculino  a estar na negativização do falo, a busca de sentido para o que é entupido e denegado no desentendimento. Daí saímos , em direção a significação do mundo.  Pois, então,  o olhar é já o inicio do discurso, do pensamento, onde as cargas de afeto vão se aprimorando – não é esse o trabalho de habitação feito pela cultura? – cargas cada vez mais sutis, delicadas, diz Freud no texto sobre a Verneinung, ... da denegação. Ali, o   pensar, toma o corpo do pensador,  tensionado, contido, diríamos, e  vai se acalmando, o acalmando, contendo sua angústia, através de “idéias vivificadas – envidadas -  na medida que se harmonizam com seu objetivo” (Belebung der zu seinen Zielen passenden Vorstellungen zur Geltum zu bringen sucht) (1910) até se transformarem em pensamento, calmo, deslisante sobre a pedra – lembremos la pensée e o pensador de Rodin -  os dramas enregelados(frozen dramas), de que falou Fairbairn...os tumultos e convulsões no mundo em que vivemos...às vezes desamparados....e, daí, as coisas vão ganhando vida, as representações vão sendo “envidadas” (às vezes tão frios discursos brutais ...às vezes serenos e calorosos...sempre com afeto...o ódio... e o calor da vontade de amar.... falas do mundo, sempre inacabadas, como no trabalho de Elida Tessler, sobre o mundo...intermediadas, atravessadas e atravessando...olhares  como o daquelas  duas estátuas cinzeladas magistralmente,  por  Rodin, le penseur e la pensée. O que querem nos dizer essas estátuas...estas esculturas....? De onde saímos nós, de que pedra fria? Rodin colocou o pensador na porta do inferno.  Já pensaram a carga de afeto coagulada nesse gesto do artista?  O afeto está, para além das palavras, em outro trabalho da cultura, como nos  contos, sempre tão curtos,   cheios de solidão e solidariedade do escritor uruguaio Juan José Morossolli, e a nos remeter, também, a Van Gogh e seu Campo de trigo com corvos,  onde os corvos que parecem, a um só tempo, tão presentes e tão distantes, anunciar seu suicídio, dois dias depois...
Nunca conseguiríamos  dizer o que experienciamos como vida, sem a mal-dicção, a Versagung,  o vivo vivido em nosso travesseiro, utilizando somente as regras da gramática – isso,  para falar de forma mais sutil, sobre o indizível dos afetos.  Os medos que sentimos, antes de toda palavra, de nosso próprio ódio e vice-versa....os ódios que sentimos dos  medos que sentimos...de sentirmos medo...
Essas questões, já no nascedouro do olhar, no corpo, são cruciais,  pois, na clínica,  cada vez mais, são presentes, pela atual cultura do espetáculo, onde  o olhar vampiriza o que vê e é vampirizado pelo que vê, num mútuo esvaziamento do sujeito e da cultura.  Esse olhar vampiresco  suga e confunde resto-excesso e o resto que é  falta/falha, e excessos a serem acolhidos em falta/falha de habitação. Desabitação, sobretudo, diríamos,  quando  nos deslocamos  para o somente morto das representações, teorias que parecem acreditar em um mundo passível de ser objetivado, empurrado “güela a dentro”,  o mundo entendido apenas como objeto de formulas, de teorias, de pensamentos, sem vida,  falsamente tido como cibernético,  dito globalizado, um mundo sem vida que demanda presença, ação de acolher, vigor e vigência da vida.
Está ai o risco maior das teorias, tão imprescindíveis . Kibernetiké, nos lembra Emmanuel Carneiro Leão,  a dar  origem a palavra cibernética, era o timão das embarcações,  no mundo grego, e este incluía o eixo, a hélice, o mar, a receber com os ventos  e as ondas, o movimento sempre outro, da água. Não o mundo uno, fechado...global, dito mundializado... apenas nas representações. Um mundo sempre outro.
Não esqueçamos, portanto  o corpo, e que pulsão não é somente representação,  quando falamos de fascinação do olhar e não tenhamos dúvidas de que, se atribuímos ao –phi, a negação da falicidade, ocorrida na dignidade da função simbólica, sabemos ser  esta  possibilitada pela função do falo. Não se trata de negação do nada, mas de um pleno vazio. Mesmo em sua forma negativa, também  ela, essa função, pode  trazer  uma sehnsucht, uma ânsia indizível de passado, não necessariamente objetivável,  como o que estaria imaginariamente, no depois, nas madelaines de Proust, e  no presente,  a produzir um tarissement, um esvaziamento, do afeto,  um mútuo esgotamento do Um e do Outro.

O Um e o Outro

Aprendemos com Marie Claire Booms, que enquanto o Outro  é uma soldagem imaginária do que seja o mundo e suas circunstâncias,, por onde  gerundivamente vamos sendo, o Um, é aquilo realmente  a se  contrapor  ao Outro. É ação, reunião, afirmação de um momento desse Outro. Na política, o Um é gesto, ato,  que faz História, mas também está a  vir da História.  Um, do calor do  gesto, entretanto,  quando diluído pelo  movimento invasor -  a mãe a entupir a criança de alimento ou mimo -   numa paradoxal despotencialização  no ato, no excesso, a ser somente falha. Excesso de presença – toda presença deve  implicar em possibilidade de alguma presença ausente,  para que seja habitação– e falha – a poder ser, às vezes necessária -  de um ponto no apoio. Ponto que implica no poder-se, ao se  confrontar com os signos  atuais,  encomendar passados  e envia-los em  novos destinos... signo, pois, aquele ponto,  em sinalização de novos destinos.  
E, ao mesmo tempo em que há o  esvaziamento do Um, do gesto,  também  um Outro se esvai.  O carinho como “energia inibida no alvo”, funde-se em esperança, a espera mútua de atenção e “lugar”, competência para atendimento. Esperança de ter tido, um lugar a se voltar,  segundo Edson Lannes e, também de estar aí, de presença, de não se perder em ausências.  A competência está sempre ligada ao que nos compete, diante das demandas, como disse Wilson Chebabi. Mas uma competência de criar, de fazer, de habilidade. Para poder se lançar. “Há muitas maneiras de saltar, o importante sendo saltar”, disse Camus. E sabemos que o salto realmente importante é aquele do inconsciente, do ensimesmamento, para o mundo onde sempre estive sem perceber...
  O Outro, para que não seja ideologia, se situa no nascimento, a um só tempo, do sujeito e   grupo e mundo como “coisa” externo-interna. Para essa noção partimos da idéia de “grupo como objeto interno”, proposta por René Kaës”.  Diríamos coisa(no sentido da “Sache” heideggeriana, a ser uma disposição) . O grupo é como um sonho.  No início   do aparecimento do Um, o Outro,  isto é, aquilo a ser  solda imaginária, é também,  ali, uma figura a ser re-iniciada...para ir delineando outro gesto, outro Um.  São inúmeros os gestos, que poderiam ser vistos como acting na clínica mas, em realidade, a serem um  pedido de passagem do Um, de algum gesto. Mas são gestos que tentam  ek-sistencia... Apenas aceitação...habitação dizemos ainda... E habitação somente pode sê-lo, se for requerida por conflitos...estranhamentos, riscos de expatriação.
Uma criança, levou em uma caixa muito bem enfeitada, um presente para sua analista. Puxado o lindo laço salta um sapo...O sapo, dizia a criança ter aprendido,  é um animal muito importante na ecologia...Os sapos quando acolhidos, são lindos presentes. Na clínica, não existem acting outs...
O sentimento de desamparo está na falha do acolhimento desse salto, pois, onde   a significação se encerra como corporificada, incorporada, às vezes tão encorpada, de espaços sem vida, de instituições e de teorias “bem acabadas”. Fecha-se, com isso,   o que poderia ser aberto, no fechado se sua síntese-afirmação, no Um de um gesto.  Há aí, assim,  negação do gesto in statu nascendi, pelo gesto autoritário de um “certo” Outro.  Vocês vêem: não é à toa que se critica tanto o corporativismo – O que  quer o autoritário, às vezes um pouco afetado? (Mas numa afetação denegada). A negação de um “certo” Outro.
 Um e solda, a sempre ensaiar seus traços? Seria  como Van Gogh,  cheio  perguntas, cheio de toda dúvida, procurando, na angústia, tudo soldar?  Parece que não...  Van Gogh dizia na carta ao irmão:
“Às vezes Théo, a natureza está tão linda....que já não sei mais quem eu sou....”
A dúvida a ser  a verdadeira piedade do pensamento, como bem diz Heidegger, transforma o método, em  travessia do próprio caminhar.  Os paradigmas, os modelos, se tornam   algo unicamente  a ser deformado, como disse Antonin Artaud, e algo deformado, pelas presenças claudicantes, falhas,  a  entrarem , a  serem incluídas na cena... da vida. E não expulsas, pela pletora de significantes ritualizados em ambientes, grupos, fechados. Há um Outro do Nazismo, um Outro do mundo grego, etc,  Não teríamos a impressão, às vezes, de  que a defesa de certas doutrinas teóricas, são no fato uma militância e não uma busca de acompanhamento do percurso brumoso da caminhar   humano? Sem negar a importância das formulações da teoria, devemos considerar que, além do conhecimento, o humano implica em fé e sublimação– a não existirem fora do grupo - em poder e, portanto política, e ainda, sobretudo,  em  pensamento.
Nenhum instrumento pode ser apenas inútil, na diabolização do deformado – e do deformador -  do imperfeito das apresentações dos sujeitos. Sabemos, não há oposição do útil ao inútil: ao útil, em toda política, em toda exclusão, portanto – e aqui incluímos o excluído pelas fronteiras de qualquer saber - está o peçonhento a necessariamente  envolver  e degradar as “decadências”, no sentido heideggeriano, do Um e do Outro. Ao útil o que  está mesmo  a se contrapor  é o venenoso, nos ensinou Freud em seu célebre texto de 1925.
Refiro-me aqui, à crueldade sem álibi a se apossar das instituições, e Derrida não poupa as Analíticas.  Nas técnicas, apoiadas no processo de recalcamento - a estar sempre em andamento (Verdrägunsvorgang), -  recalque-repressão, interno-externo, como denuncia o afeto. Internamente,   há uma “armação” (Ge-stell- Heidegger), “acordos” das três instâncias, na luta política por  hegemonia. Um Eu que sempre novamente tenta se apresentar de outra maneira na cena do mundo. E externamente, naquela mesma “duração”, um mundo e as infidelidades do meio,  a se recriar, continuamente,  impiedoso ou acolhedor.Internamente sentimos uma coisa, um Isso que se dá dentro da gente e que, e que às vezes, pensamos ...  não devia. Externamente, vemos nas instituições analíticas mais facilmente,  os restos de transferência, a demandarem entendimento, uma vez que não podem existir sem conseqüências... para o grupo e, portanto, para os sujeitos.

Existe, assim, Um Eu de pura apresentação, de pisada na cena da vida,  um Eu  inconsciente, um  eu-corpo, tal como mostra Masud Khan em seu masgistral texto, “O Rancor da Histérica”. Nessa tentativa de  pisada na cena, a poder ser inibida...como nas inibições profissionais...
Esse Eu faz ensaio, ações-experiências, de provar do mundo (Probeakion), repetições, nunca as mesmas.  Descobrimos somente depois, o que o grupo acolhe:  o grupo como coisa interna, mas também  como sonho vivido. Há aqui uma comunicação na porosidade externo-interna de que fala Maximo Canevacci, do ponto de vista da Antropologia e, interno-externo, como estuda Nahman Armony, uma freqüentação da porosidade, na direção interno-extena. O Eu finge, se dissimula, se  déguise, experimenta um personagem,  e aí está toda a problemática do semblant, aparência, aparecimento e fingimento, em seus negócios com o Isso e com  o Supereu, mas ao mesmo tempo, em uma pulsão de empresa, de empreendimento. É o Um, Intermediário, porta sonho, porta voz, porta palavra, porta sintoma, sempre a encaminhar uma angústia a qual é uma digna habitação a encontrar repouso na cena do grupo.
 Como trabalhar tudo isso, sem invadir os sujeitos? Como lidar com a “realidade”, na clínica e com o clínico, nos grupos ditos operativos? Como se dá o legitimar  dos sujeitos, a necessitarem de autonomia, para sujeitos serem e de emancipação para serem cidadãos? E isso quando, ao mesmo tempo,  se pergunta por diabolizações de gestos ou por pertinaz  esperança nas repetições de algo, insistências “diabólicas”  no  que é denegado, banido ou, na melhor das hipóteses, mantido em suspensão (Aufhebung), ou a ser  cozido em água fria, como se diz na  política?
Mas com que fim o Eu se articula? Sobretudo, como se articula nessa presença negativa, e no sehnsucht, na ansia de uma direção voltada para o aparecimento, a sua re-velação? Sabemos que não sem apreensão e sem busca de compreensão, domínio. Homo homini lupus.  Também aí,  na aceitação e exclusão dos grupos,  está o For-Da: o sujeito, aí,  aparece e desaparece. Sujeito e grupo. Há, sobretudo, assim, o perigo para a criatividade. Angústia terrível de ameaça de exclusão e vemos isso em toda despedida de emprego, nos sintomas a se manifestarem  em seminários, inclusive em nossas sociedades analíticas, sem nem mesmo a necessidade de,  na presença do seu analista, aquele que está a  expor,  receber um olhar, um diagnostico mal-placé. Os sans-place são os mesmos sans-papier, uma vez que o ponto do sujeito, sua  verdadeira identidade, não vem de um ato cartorial.
Não construímos a nossa melhor teoria de mundo, já na experiência do ensaio de nossos passos? Não vamos  aprendendo de espacialidades, abertura sonhada, já nos espaços antigos,  e a  dialogar  com o mundo desde onde  inicialmente se é e se está náufrago, e onde “se nada para não afogar”, no dizer de Ortega y Gasset. Não está  a verdadeira técnica, já aí, realmente a vigir, isto é, a criamos, ao mesmo tempo que nos inventamos,  quando adentramos espacialidades e temporalidades  novas?
Aí, para René Kaës,  inventa-se  um objeto, partindo de um grupo originário, primordial, um bolo, um romance sempre familiar e estranho,  e sempre ponto de partida de chegada,  do qual vamos nos destacando, na medida que estamos mais presentes, em nossa diferença. Não é uma questão da antiga geografia, onde uma ilha é um pedaço de terra cercado de água por todos os lados. Parecem nos fazer crer que o mapa cibernético do mundo quer nos fazer crer que ele mesmo se tornou uma ilha.
Mas, continuamos presentes, com, a cada vez, outra presença. O geógrafo Pierre Rafestin diz que hoje a geografia deve ser, não mais um mapa, mas um relato de viagem.

Ainda um momento para a teoria?

  As ideias vão ganhando forma, vão formatando o conhecimento, no fazer da teoria – há conhecimento independente de teoria e ideologia .  No  gesto do  Tornar-se Consciente, (Bewustwerden), esta Instância de atividade e passagem,  a ida que é também retorno exige forma.  Onde o sistema motor se torna pensamento...aí onde estava o Isso...Ou como diz Emmanuel carneiro Leão, para uma tradução, mais fiel para o “Wo es war...”: aí onde estou e sempre estive, sem me dar conta, aí, estou sempre me tornando... Aí estamos co-nascendo no mundo, conhecendo o mundo. Essa Instância-gesto que foi esquecida – o Tornar-se Consciente - para o aparecimento de uma tópica, mais conveniente, digamos assim, e que estava, ela, como gesto, de dentro mesmo do gesto, como disposição, e, não necessariamente dispositivo,   entre o inconsciente e o consciente.  Aquela técnica-potência do fantasma e das fantasias,  do tempo dos “grupos de idéias”, sempre esmaecidas,  vindas do nebuloso das “noites”, de cuidados corporais, e de fantasias interditadas,  nas formulações freudianas, para os “casos de histeria”. Essa Instância,  desapareceu de vez. Muita coisa ficou perdida na passagem da teoria da hipnose para a teoria da transferência...disse Freud. Aqui, algo mais ficou perdido, o gesto, como também o cuidado, a atenção(Aufmerksamkeit)...da teoria da atenção, para a teoria da atenção flutuante... agora a artesania das ligações, o que solda... uma solda afetiva originária,   do gesto, do centro do abismo do percepto, uma voz, meio sua, meio outra, um brilho do olhar, como situou Winnicott – ou um som, esse primeiro objeto, como o disse Freud.
 Vultos, vindo de ruídos...os sentidos se encantam uns nos outros...viajam...na ânsia, na angústia  de  um “vazio dos sinais de passos na neve”, no frio da solidão , da  necessidade ao desejo, do desamparo à  invenção. São vultos  que são os rastros de recordação (Erinnerungspuren), ou ditos de maneira mecânica, na tradução errada:  traços minésicos. Como disse Freud, como o vazio dos rastros, das pegadas, na neve. Essas pegadas se repetem no curso do viver, mas sempre de outra maneira, nossa angústia ou a do analisante, podendo as ver sempre como um mesmo...

Sabemos, assim,  que esses rastros são  estimulados e  soldados aos encantos do olhar atento e  cuidadoso do outro, do  eu-sempre-outro, em nossa paixão de ser outro, como diz lindamente Lena Bergstein,  que está aí e pode falhar,  pelo afeto aí deixado de ser  expresso.  Durante esse instante  mesmo a sua procura(Sucht), saudade (Sehsucht), angústia(Angst) se fundem, se soldam, em um continuo ensaio para o  outro, em direção ao Outro..
Mas sabemos, com Lacan que o que esse Outro quer mesmo é minha Angustia.
 É, então, sempre de novo,  o tumulto, a convulsão do corpo, o acesso acolhido, um outro lugar e outro ponto, a se repetir na procura e,  a ser sempre procurado ao longo da vida.
Nunca o  procuramos, e isso faríamos... inutilmente, venenosamente... na chamada introspecção maligna,  em nós mesmos somente, pois somente vamos encontra-lo, esse ponto,  a cada re-encontro no olhar atento, cuidadoso, de cada Um, que está  a, delicadamente, no seu gesto de nos dedicar sua atenção.

Muito obrigado, por sua atenção.

Nota. Esse texto foi apresentado no Congresso Internacional sobre a Angústia, promovido pela Associação Psicanalítica de Porto Alegre, em 2008.


[1] Depois, apresentando este mesmo texto em Recife, lembrei-me de que minha terra natal, Pirapora, em Minas,  à beira do Rio São Francisco, é habitada por uma maioria de origem  nordestina.

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