Van Gogh

Van Gogh

Pesquisar este blog

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

A PESSOA HUMANA E SUA VIDA NOS GRUPOS



A Pessoa Humana  e sua Vida nos Grupos.

                               Jorge de Campos Valadares

Eles fracassaram porque não tinham começado pelo
         Sonho.  
William Shakeaspeare
Resumo.
Pensar, hoje, uma pessoa humana mantida somente a  partir de um inconsciente enclausurado, fora do trabalho continuo da Intersubjetividade e do saber-sabor a vir das presenças, parece um idealismo inaceitável. Além dos aspectos ligados ao que é  Subjetivo,  deve ser considerado aquilo a ser o Subjetal dizendo de, além de dispositivos fantasmáticos, de uma disposição (presença) para confrontos, em direção  a mudanças internas e de lugar no grupo, seguindo projetos de ser no mundo. Aí, então, localizamos um trabalho de um grupo interno, a ser inicialmente um grupo primordial, fonte do  Eu Ideal, formado no seio do romance familiar, que, com o seu envelope, ainda rudimentar,  vai conter os movimentos do que abrigará as formas do grupo como objeto, espaço interno central para as ações situadas, a situação do sujeito. Esse Eu Ideal permanece no seio do Ideal do Eu e é sentido, a cada gesto, no ato narcísico do amor próprio, da estima do si mesmo (Selbstgefühl, Freud). Aqui, a pessoa humana é acolhida em tumultos, convulsões, agitações, compreensões, com-sentimentos, aquiescências, que, sendo sempre   interno-externos, são graças da experiência de enfrentamentos, possibilitadoras de novas situações em demandas, desejos, murmúrios fabulações, sonhos e mitos. Aquilo a ser obsceno à linguagem pode, nessas circunstâncias, não ser obsceno ao grupo,  uma vez que este dispensa, na legitimação da cumplicidade em  uma base fusionada, as explicações para essências,  fundamentos e origem  na estruturação das pessoas. A necessidade dessas explicações (Aufklärungen) fazem parte de um “rigor teórico”, mais a serviço da manutenção de um stutus quo institucional em pactos denegativos que têm paralizado a investigação psicanalítica.

Palavras-chave: Psicanálise. Presença. Grupo. Grupo Interno.  Pessoa Humana. Sujeito. Sonho. Análise Institucional.
                                  
Apresentação
O sonho é tema primordial da vida humana e foi, antes, considerado  na poesia e nas religiões. Sonhar é,  também, exercer a vida nos atos, muitas vezes, im-pensados. O sonho é,  também muitas vezes, um silêncio nos nossos convívios, e o silêncio, como o disse Guimarães  Rosa, é a gente mesmo, demais.  Freud teve dúvidas se o pontapé inicial, (Anstoss) do sonho vinha dos rastros de recordação (Erinnerunspuren) ou dos restos diurnos. Fora disso, é falar de representações, isto é, como disse Serge Laclaire, trazer para o presente o que já foi presente, isto é, falar da  morte,  a ser também uma necessidade, na medida do seu uso conveniente.
                   Tudo leva a crer que uma nova forma de viver pensar o psiquismo está por ser elaborada. Uma consideração do convívio e da presença e sua metapsicologia, um respeito pela vida nos grupos estão a exigirem, com  urgência, atitudes a  nos levarem a uma constatação,  de uma exigência do aparelho da alma,  tão forte, quanto a  solicitada pelos “rastros de recordação” (Erinnerungspuren), e os “objetos internos”. Estamos  empregando, aqui a palavra alma, no sentido freudiano do termo, Sehele?, o impulso, o sopro em direção ao viver.
A denegação  da “tensa, densa e intensa” vida grupal, inclusive nos grupos de estudo e sociedades psicanalíticos, está a exigir uma posição corajosa, como mostrou Jacques Derrida, falando em 2000 sobre o mal estar na psicanálise, e como René Kaës tem descrito. Seria esta coragem a única medida  a nos  tirar do atual marasmo e pobreza inventiva e, até mesmo, de uma pretensão de rigor na teoria, às vezes cínica, diante da vida humana. Lembramos que a palavra rigor, tem origem no latim rigidus e, no séc XII, foi a referência para a cella di rigore, as câmaras de tortura da Veneza Medieval. Geralmente quando se diz da importância da presença, se reclama da pobreza teórica em torno do assunto, o que já não é tanto uma verdade, e é ocasião pra repetir o dito de Charcot, de que Freud tanto gostava: ça n´empeche pás d´exister...
Sentimentos, os mais radicais, expõem, hoje, a pele e a carne  dos sujeitos na cena do mundo. O medo, a vergonha, a crueldade, o ódio, a repulsa nos colocam, paradoxalmente, com um sentimento de que a “liberdade” chegou e podemos tudo. Isso como fruto da denegação de que a liberdade é, contraditoriamente, uma condenação humana, como disse Sartre. Os cenários parecem poder conter tudo e isso leva os sujeitos a uma falsa visão do que seja acolhimento, favorecendo vivências de onipotência em todas as áreas, inclusive na idealização de teorias, ora centradas num pragmatismo impensado, atuado,  ora em um  visível  idealismo, de volta à uma metafísica de pouca valia. A cultura, exaurida pela repetição, pela compulsão, reclama por um novo entendimento e por novas práticas. Todo o assemelhado ao “dominado”, traz sociedade e instituições a parecerem viver drogadas, e  necessitarem de novo ordenamento, de novas ritualísticas – não há cultura sem elas e  entre elas as que devem elaborar o perdão e a vergonha e não mais somente a culpabilidade. Tal trabalho,  a merecer um novo tratamento da Cultura, agora sem poder contar com gênios, como Freud e Marx, com suas sínteses modelares, uma vez que as “autoridades da palavra” estão contestadas, com o descrédito das lideranças e dos maitres-à-penser, sobretudo pela proliferação da informação. Esse fato tem legitimado práticas, onde o sentimento de vazio, antes apavorante é vivência cotidiana e o desamparo, o abandono, o desvalimento tem sido lugar de um “desgaste” que leva a carência do afetivo às raias da mendicância, para empregar os termos de Georges Bataille. Para compensar, uma busca desesperada por profundidades, por  verdades sempre “teóricas”, sempre esquecida que o profundo é o afeto e não as “compreensões”. Tudo isso, no extremo da paradoxal denegação, esse texto freudiano ora citado  “a exaustão, ora execrado, onde lemos que não existe uma denegação, uma “Verneinung”, sem uma afirmação, uma “Behajung”, de uma reunificação, uma “Vereinigung”, uma síntese...
 A ciência, no máximo, das suas “especializações”, parece necessitar da ajuda da arte, de vez que, como diz, ainda Bataille, somente o poeta pode se deter diante de um mendigo. E nossa arrogância e exibição denota e conota esse mendicância E também uma ajuda das religiões, que têm trabalhado mitos e sonhos, dentro de uma perspectiva de enigmas a serem decifrados, longe de explicações, esclarecimentos, como nos ensinou Merleau Ponty. 
Distingamos, inicialmente, informação de comunicação, estando a última a exigir a presença e o afeto, longe da  tentativa falsa e desesperada de consumo de técnicas. É a vez dos instrumentos, dispositivos, proliferados à exaustão, a nova escravização pelo sistema , na tentativa da ostentação: a produção quase religiosa de seguidores, de admiradores, a enxergarem nas práticas da informação a virtualizarem a própria presença,   transformando-a  em pura representação.
A minha hipótese é de que o conhecimento –  hoje, mais que nunca, devendo  ser um co-nascimento – deve ser objeto de produção convivida, como tentamos iniciar, em nossa pesquisa, na Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, com colegas de todas as áreas e com a ajuda, sobretudo,  da arte. Estas práticas, a privilegiarem o encontro, a presença e o confronto vivo de idéias, poderiam reestruturar as atividades da ciência, agora com este maior respeito à contribuição da arte e das teologias. Somente assim, vemos um encaminhamento para a doxa, para as opiniões, fabulações e para a formulação, na ciência, de conceitos  sempre provisórios. Um novo trabalho, também para a educação, como algo de dentro para fora,   parece despontar.
Esse trabalho é,  um não trabalho, uma desistência de resistir,  numa “compreensão” paradoxalmente não acabada, vinda nas “apreensões” com um mundo “desencantado” justamente pela explicação exagerada, inclusive para aquilo que, na vida, vive essencialmente do mistério e no enigma. O trabalho é ligado a deixar fluir uma gratuidade da vida. Quando se diz que “nada é mais profundo que a pele” estamos dizendo da percepção possível, uma vez que aí, ela, a percepção pode ser o encantamento. Freud chama a atenção para esse fato, quando, debatendo sobre os problemas psicogênicos da visão, lembra que, em alemão, a palavra “Reize”, é a mesma para estímulo e para encanto.
Esse “desatividade”, passa a exigir um tempo. Não  o tempo das velocidades, uma vez que nele  vigora o horror  destrutivo das presenças, constitutivo de   “uma lógica do inferno”, sem possibilidade de confronto e, portanto, de  aquiescências,  como situa,  Jean Pierre Lebrun. Para ele hoje tudo é contestado, e, no confronto livre, se pode aquiescer. Acredito que sempre provisoriamente. O mundo simula sustentar investimentos impensáveis dos sujeitos e a sexualidade reclama nova teoria, agora enfrentando o poder sempre denegador dos pactos, nas instituições. Isso implica a dessacralização  do sistema de consumismo extenuante, e a ser encarado de frente, a fragmentação a que estão submetidos os humanos, com a exacerbação da técnica.
Nesta perspectiva, as formulações de René Kaës,  sobre o “Aparelho Psíquico Grupal”, a interssubjetiviedade, não acompanhável com teorias e “dispositivos”, a priori “bem” e “rigorosamente” elaborados, nos pode socorrer na descoberta de novos caminhos, onde, penso,  deve prevalecer uma “disposição” (Stimmung – empregando a expressão de Heidegger),  para o novo,  para a invenção.
 A própria idéia de grupo exemplar, ao contrário, deve ser continuamente re-elaborada. Dentro de uma vivência comum aos humanos, aquilo que sonhamos para o grupo, para as instituições das quais participamos, ou seja, o “grupo como objeto” da vida subjetiva, nos termos de René Kaës, é, às vezes, fechado em sentimentos de onipotência primordial de seus participantes, própria da fundação do psiquismo, a qual deve ser sempre revisitada. O grupo exemplar, sempre solidário, poderia ser, quando muito, uma Utopia, para toda a cultura humana. As instituições, sempre transformadas em corporações, exigem hoje “excelência”.
Essa questão do grupo primordial, que está e deve estar nos sonhos de solidariedade, implica em uma contínua reinvenção do todo, algo sempre da ordem do imaginário, e o luto a ser feito, a partir de atos políticos de ideais, agora encarnados e presentes, em qualquer grupamento humano. As teorias, inclusive,  são sempre produzidas, a partir de Interesses do Ego, antes de se tornarem objeto de instâncias ideais,  no debate na cultura. A vergonha de falar, de apresentação dos sujeitos, tão comum entre os iniciantes nos grupos de psicanálise,  não vai ser abordada no gesto clínico, sem uma consideração dessa questão primordial. As multiplicidades, próprias de um tempo em que a informação é um “produto”, a ser inventado, promovido, vendido continuamente,  estão a exigir reconhecimento, uma consideração do que é realmente o Subjetivo.
Também, entretanto, devemos considerar, o Subjetal, nos termos,  de René Kaës. Aqui, pode-se examinar, além dos dispositivos, das técnicas da fantasmática,   a disposição de cada um, para luta , na busca de seu espaço,  a partir da ocupação de um lugar e  da consciência da distância entre seu projeto e a aceitação deste, no grupo. Aqui o conceito de cidadania, nos termos de Castoriadis,  e de subjetividade se encontram. Essa tensão própria do subjetal, somente verificável, na graça das presenças, é tão ativa no aparelho da alma, no movimento do sopro,  quanto o que vem do inconsciente.
Por outro lado, um culto ao consciente, como vemos nos trabalhos com a “sensibilização” e com a “conscientização” denegam, na grande maioria das vezes, que a real consciência, hoje, é a do sofrimento e do despedaçamento, na desistência da verdadeira participação e frustração com o corporativismo nos setores, áreas tecnificadas, substitutas do território e seu poder regionalizado, que era  territorializado dentro das instituições,  e a viverem, conjuntamente com os setores corporativos, ambos nas suas formas  antigas. Aí as incorporações, os “restos” de transferências são denegados no mesmo momento em que são “estudados”. A síntese, a consciência, a luta pela compreensão do primitivo, do desordenado, a trazerem sempre sentimentos aí despertados, estão a exigir mais um acolhimento que uma razão instrumentalizadora.  Não se trata mais de  uma busca de origens, “coisa para nobres”, como disse Passeron, nem do profundo, uma vez que  este, como a verdade “habita o abismo”(Schiller). Cabe, sim, viver no delicado balanço de saberes infinitos e infindáveis colocados, a infinitivamente, a cada  momento ( pensado, aqui, no sentido das engenharias, como “lugares” de tensão), à nossa disposição. Viver e pensar em um mundo sem “fundamentos”, sem estruturas rígidas, dogmas, doutrinas únicas e unificadoras. Qualquer proselitismo em torno de uma codificação de estruturas, sem levar em conta o que estas estruturas têm de uma ética, e mesmo de uma certa moral civilizadora,será, hoje, inevitavelmente ligado a uma reserva de mercado, apesar das boas intensões..
As novas realidades ofereceram muito espaço aos sujeitos e o tempo, a exigir essas novas construções no convívio de confrontos necessários, chega a parecer a-histórico. Mas esse tumulto é justamente o lugar do poético indispensável ao novo, um avesso da técnica e da ciência, sempre a serem reconsideradas..
  
       Algumas idéias sobre os sujeitos e os grupos.

       O sonho, a ser cultivado nas novas formulações das teorias,  é, antes de tudo,  uma disposição para a utopia e não um movimento em direção ao útil, ao sucesso de práticas. Como diz o poeta João Cabral de Mello Neto, o sonhar não é de dentro nem de fora, ele está aí, para encontrar uma saída.
Depois de muitos anos trabalho com os grupos, tenho observado que a objetividade não é aquilo que toma a maior parte do seu tempo e,  menos ainda, a intensidade da sua vida. Isso tem  levado a uma denegação na produção de uma teoria, na psicanálise, a trabalhar com a possibilidade de um sujeito, dentro de um  espírito, necessário à epistemologia da época, na obra de  Freud,  existente fora do grupo e da cultura. É o inconsciente em “clôture” na clausura, agradável à forma francesa de pensar, sempre com rigor. Pensar e  construir  uma tal idéia de sujeito é a defesa de uma ilusão, sobretudo  denegadora  de estarmos a sobreviver – às vezes somente isso - a viver e a  conviver, num mundo idealizado para a “compreensão” das formações do inconsciente. É comum, às vezes, as pessoas acertam ao dizerem o que  outras estão a pensar... Imaginar que isso não faz parte de algo constitutivo, parece primário.
 É verdade que essa atitude é reforçada com uma postura utilitarista a trabalhar com a visão da organicidade, favorável sobretudo a uma preocupação ligada à governabilidade das instituições. Ser governado é o horror dos sujeitos, a se constituírem, nessa forma de pensar,  no seu grupo, a partir somente do sujeitamento às  leis de formação desse grupo. Com esse sujeitamento, entretanto, procuram,  reorientar a  formulação dessa lei de ordenamento, ao mesmo tempo que fazem o ensaio(Probeaktion, Freud) da pisada na cena da vida e da participação na vida humana.  Aí, “reformando”  - para empregar o termo de Ortega y Gasset – o ambiente e o seu conhecimento, com técnicas, as vezes sofisticadas, onde os “mecanismos de defesa do ego, re-inventa técnicas impensáveis e  redescobre seu próprio caminhar.  Verificamos  o sujeito fazendo sua história, sempre tentando saltar da submissão projetada nos ideais incarnados no grupo,  e olhando a imensidão, interna e externa, ensaiando alguma coragem.  Para René Kaës, o sonho, como o inconsciente, é estruturado como grupo. O que é obsceno à linguagem, pode não sê-lo ao grupo.
                    O sonho  fincado na  intersubjetividade, atuando das mais diversas formas,  as pessoas impulsionam os grupamentos, acolhe, contêm um verdadeiro tumulto,  transformando-o, em convulsões, agitações, turbilhonamentos,  em murmúrios, fabulações, confabulações coletivas, até poderem alcançar alguma objetividade, não necessariamente explicável, pois esta está diluída no cenário a ser reconstruído com as técnicas. Tudo isto é vivido interna e externamente pelos sujeitos  a  perceberem, conhecerem (co-nascerem) e transformarem o seu ambiente e, somente  assim, terem uma apreensão do mundo, depois do enfrentamento de sua apreensão com o mundo, condições centrais, para uma mudança em  si mesmos. Nesse sentido, Heidegger afirmou que o ser no mundo (Dasein) é que há de mais concreto, com as formas de amar, se ligar, sendo os seres do seu sentimento. Freud afirmou que o amor próprio vem com a confirmação de projetos, vindos com a sua realização. Esse movimento, tumultuado é antes de tudo, então, uma agitação, vinda de apreensões  ditadas por parcialidades, a impulsionarem uma desobediência dos objetos, para empregar a análise de George Bataille. Penso ser nesse sentido que Brentano afirmou que Deus está no detalhe. A questão da agitação, às vezes, vistas como uma coisa singular ao sujeito, é um movimento também grupal. Maria Helena Valadares, Monica S. Costa e Silvio Yassui  mostram como nos sujeitos, na família, no hospital e ambulatórios, há reverberações mútuas, simultaneas ou não, desses momentos de turbulência agitação, convulsão ou crise. Luiz Carlos Brant, pesquisou, em seu doutoramento, a transformação, sobretudo na psiquiatria, do sofrimento em adoecimento, e, como esses tumultos são tamponados, com a farmacologia moderna.
                    Através de projetos, ora encobrindo, ora enfrentando denegações e  pactos denegativos,  pode-se ter o encaminhamento, o continente e a sustentação paradoxal  de um movimento para as estórias freqüentemente desconexas, e para a procura de sentido para a História Humana. Não há a transformação de um sujeito, sem a transformação de seu entorno, a menos que ele viva em uma perspectiva ideal.  É nesse sentido que Alberti, Brunelleschi, já no renascimento  e Argan, na atualidade, disseram que a perspectiva é um fato mental e não um fenômeno da física e da ótica.  Mais que isso, como na citação de Shakeaspeare, o sonho, como a transformação e a transfiguração é a causa do movimento, com a queda que é a Causa ( palavra a se originar em queda), de outras parcialidades, nas técnicas a serem empregadas, como mostrou Heidegger.  Na sua forma recorrente, o sonho vai deixando nas suas bordas, os sentidos mais “tensos densos e imensos”, os restos de sua sanha, para possibilitar, em contínuas retomadas e na virtualidade apresentada, um sempre novo entendimento do mundo ou uma sempre nova forma restauradora e conservadora forma de poder e de decisões, isto é,  de atos políticos.
                       Esse entendimento, uma perspectiva e uma profundidade reconhecida para as presenças,  é o ensaio, em  contínuas retomadas, no sentido de encaminhar, numa tentativa feitas de gestos, de ações, seguindo visões,  pulsões a partirem de um “sentimento de mundo”, ou de um certo e determinado “ser do sentimento”, um “ser do sensível”,  de uma visão sempre provisória do todo. Tal movimento constitui  a vida humana, na Cultura, mais que uma investida civilizadora.
                    A origem desses movimentos de entendimento do mundo, como tem a psicanálise mostrado, está na aceitação da precariedade, na  consciência da necessidade do preenchimento de uma cárie esquecida, mas atuante.  E também de uma esperança das pessoas de se tornarem o que são e de serem  o que se tornaram, com  diz René Kaës.
                   O trabalho da cultura, na visão psicanalítica, se inicia, no mundo da pulsão, sempre pronta a ser ensaiada, esta, uma invenção teórica central da obra de Freud, sempre encostada, apoiada na necessidade, no instinto, a ser sempre defletido, seguindo em direção ao imã fascinante do trabalho de simbolização, básico na formação dos humanos e dessa mesma  cultura que os cultiva,  e onde eles se des-envolvem e desenvolvem o cenário. Há, aí, algo a fazer o humano progredir, mas sempre partindo sustentado por uma volta a  sua origem e na esperança de transformá-la nos gestos de se apresentar continuamente outro. A volta à origem é uma coisa natural no grupo. Uma transformação, aqui um ressurgimento, uma epifania, no sentido do cristianismo, assim, a considerar sempre a possibilidade de novas representações, de criações,  daquilo a parecer impensável, incompreensível, transcendente, a partir de uma apropriação mais ampla do trabalho humano. Uma trans-figuração, visível nas comemorações, nas celebrações, a tomar o lugar do sacrifício, no cotidiano, pois, se apropria em atos, em ritualísticas,  a um só tempo,  do tempo da História, e o tempo sem tempo dos inconscientes.
       Curiosamente, o termo sustentação é o mesmo  empregado pela  ecologia e pela psicanálise de Winnicott. Há um tempo atrás, me dirigindo aos colegas da Saúde Pública, formulei a seguinte pergunta: como pode um indivíduo não sustentado emocionalmente, psicologicamente,  sustentar um ambiente sadio? Naquela época, estávamos comovidos, por exemplo, com populações habitando as margens de grandes cursos d’água  e interditadas de pescar, em períodos de reprodução dos peixes,  sem terem outra forma de alimento. É lógico que via essa interdição idealizada apoiada em um ética ideal a ser cegamente seguida pelo homem do interior.  É assim, na presença e na apresentação da cena do mundo que os grupos propiciam, acolhem ou interditam gestos, na cultura e os adiam no interior dos sonhos e dos mitos.
        Hoje, me dirigindo aos colegas psicanalistas, faço a pergunta inversa: como, habitando em um mundo regido por uma lógica do inferno, fora de uma sustentação da promessa de ordenação, sem contar com  uma autoridade da palavra,  para retomar a expressões  de Jean-Pierre Lebrun,  projetando para o exterior de um romance familiar caótico, podemos exigir dos governantes uma  organização, um “continente”, para o “conteúdo” da desordem? Que aquiescência , seguindo ainda as formulações de Lebrun, podemos oferecer a governantes, muitas vezes preparados que somos, segundo as formulações acadêmicas, para sermos, apenas, autoridades do saber, ou seja, defensores do questionamento intelectualizado. Para Lebrun, o confronto inevitável com a autoridade, hoje, somente pode ser fecundo a partir de  uma aquiescência àquilo a ser continuamente constituído, conseguida por um trabalho  dentro desse confronto. Acrescentamos ainda, que, se onde falta a palavra, aparece a violência, onde falta o encontro aparece a crueldade do exibicionismo, a hipocrisia e o cinismo.
        Voltamo-nos, então, agora, para os conceitos de crueldade, impiedade, fontes, ao meu ver, irrefutáveis, para a formulação de uma teoria mais atual, ou seja, aquela que se dirija  para  uma reforma do entendimento.
       Aqui empregamos uma outra maneira de dizer, mais psicanalítica talvez, para a afirmação do advogado Marcelo Freixa:  “antes o gesto revolucionário consistia em  transgredir as leis, hoje ele está em fazer cumpri-las”. E penso: o trabalho de construção de leis,  a partir de um pensamento verdadeiramente revolucionário, parece  implicar em participação. Fora disso, é a crueldade, a impossibilidade de criar, esta a ser uma condição indispensável à vida humana. Se, antes, a transmissão do saber era compreendida como o trabalho  de elaboração de transferências, na solidão  dos sujeitos,  a produção do pensamento, nos sujeitos e na cultura,  como veremos adiante, somente pode ser entendida, hoje,  a partir de uma formulação conjunta sujeito-grupo das idéias de  inconsciente estruturado como grupo e  de grupo como objeto a ser sempre reconstruído, idéias estas lentamente artesanadas,  na intersubjetividade.
        Esta é a mesma formulação para uma psicanálise que se pensa  dentro do que Felix Guattari chamou de transversalidade, isto é, um constitutivo, a um só tempo  dos grupos e dos sujeitos, que implicaria em uma paixão de ser outro – uma feliz expressão da artista plástica Lena Bergstein - e assim, num saber transdisciplinar. Localizo o trabalho da transdisciplina, mais que o multidisciplinar, como uma ação, um drama, da intersubjetividade.  Um drama impossível de ser representado e a ser sempre atuado - aqui no sentido dado pelo teatro -, em cada  atuação. Um psicólogo e um médico, por exemplo, trabalhando com pacientes terminais, no seu respeito mútuo, somente numa paixão de ser outro, uma pathos de mudar e mudar-se,  de crescer inventando um outro mundo, podem trabalhar bem. O saber que passam a compreender na aquiescência ao saber do outro.
No devagar do caminho, no trabalho da cultura, nas sociedades, os grupos vão construindo sempre poeticamente, às vezes, com a produção inventiva,  de forma mais próxima à arte, isto é, às vezes de forma mais técnica,  mais próxima à ciência, pois, e outras vezes mais próxima ao turbilhonamento da vida, do sensível, uma versão, uma direção e uma história para os direitos e para as exclusões. Não trabalham os grupos, como faz o sujeito, tentando de antemão “compreender” a situ-ação.   A urgência e a necessidade de uso e de usura, que parecem, hoje, predominar, tornam a reprodução, no mundo atual, uma condição primeira do movimento ou, talvez, de sua inércia. A teoria das pulsões, a tentar dar um contorno para o movimento da  fantasia e do im-pensável, em clôture, no sujeito, não esgota a possibilidade de trabalho de grupo, interno aos mesmos, do que Freud chamou de grupo de idéias, nos casos de histeria.  No ensaio e na repetição é a vez da ciências e suas maquinações puramente técnicas, sempre úteis.  Na contemplação e na procura do bom e do belo há o valor primordial do inútil.
Como os objetos, em sua infinita fragmentação, estão a desobedecer, o uso desse objeto, nos termos da psicanálise, só pode se dar, nas formas primárias do psiquismo. É o caso do “uso de objeto na teoria winnicottiana.  As elocubrações da modernidade dão assim, margem, para se pensar o “grupo interno primordial” se fazendo, à medida em que os dois sujeitos envolvidos ensaiam em ato as identificações. Pensamos com Heidegger o que seja identificação:  algo que implica o diferente.
É parte essencial da criação, da invenção a procurarem, na transformação,  o convocar os sujeito para, para o aparecimento de novas figuras, e para a sua própria transfiguração.Há aí então um gesto poético a falar como, infinitivamente, o faz Georges Bataille, das “variáveis entre as formações subsidiárias e o elemento residual   da poesia..[onde]..ela o consagra  [ao poeta], de forma não utilitária, às formas de atividade as mais decepcionantes, à miséria, ao desespero, à persecução de sombras inconsistentes,  a não poderem nada oferecer, senão a vertigem ou o furor”. Nesse furor, tumulto ou convulsão, que o grupo acolhe o obscênico à liguagem. Nada de utilitário, como princípio, além do enfrentamento do medo diante do novo, e dos riscos daí decorrentes, do que, enfim, esses riscos trazem de obscenidade. O que é obsceno à linguagem aparece como ação enregelada, no drama (frozen drama, no dizer de Fairbairn) dos grupos internos e externos aos sujeitos. O silêncio e suas sombras, no inconsciente, falam mais que as palavras  sobre esse drama, que,  embora muito vivo e vivido, é irrepresentável.
 Sobre as sombras, disse o poeta argentino Jorge Luiz Borges: 
  "Dios ha creado las noches que se arman/ de sueños y las formas del espejo/ para que el hombre sienta que es reflejo/ y vanidad. Por eso nos alarman."
O  espelho é a primeira tentativa grupal, em cujos reflexos não somos senão a expressão do que é vão e vazio, este a não ser nunca confundido com o nada.
Estamos, optando, portanto, por uma forma poética,  uma vez que o  inútil não existe para o sujeito, em sua subjetividade. Ao útil, nos ensina Freud no texto sobre a denegação, o sujeito do inconsciente contrapõe não o inútil, mas o peçonhento. Com isso, todo utilitarismo  não pode aparecer em um dispositivo, uma técnica – que é sempre útil para diminuir o esforço e produzir conforto – para abranger o trabalho no des-conhecido, com o impensável.  A denegação do exterior é própria do “trabalho de grupo”, como o é para os sujeitos. No seu trabalho sobre a denegação ( Verneinung) , Freud descreve um movimento do sujeito, partido de uma contra-ordem (Abweisung)  - a não ser uma recusa (Verleugnung), passando por uma suspensão (Aufhebung) do recalcamento, e contrapondo-se à afirmação (Bejahung), de uma reunião, uma síntese, e com uma pulsão de destruição(Destruktiontrieb), a não ser uma pulsão de morte (Todestrieb), até chegar ao movimento da denegação. Esse trabalho do sujeito é desenvolvido e acolhido  nos grupos, desde o grupo familiar, na infância, em direção à sua afirmação. Há  aí mais que uma compreensão: há uma aceitação, uma primordial invenção de um mundo incondicional, em que os objetos são disposição, Dasein, ser de sentimentos, independentes de sentimentos de ser,   e, portanto,  não são dispositivos, objetos de uma  razão instrumental, uma vez que é uma tessitura em labirinto, com idas e vindas, com de-existências e retomadas, entrelaçando  mitos,  fabulações e  sonhos.
Os envelopes grupais, construções do grupo interno de cada um e na atividade intersubjetiva, tentam conter aquilo que, nas suas ritualísticas de elaboração dos traumas, encaminham a agressividade, o perdão, para a aquiescência, em movimentos do  invisível, do impensável e, portanto, indizível . Uma disposição para o poético é central, uma vez que o dispositivo da racionalidade é apenas um lugar de “compreensão”, no sentido inglês do termo e, portanto, da pulsão de domínio, parcial sempre, como toda pulsão.
            Assim, um olhar  preocupado  com os caminhos seguidos pela  cultura, ou com os descaminhos seguidos pelos sujeitos, sobretudo com a produção do conhecimento, nos leva, inevitavelmente, a  pensar em dois temas a, atualmente, não poderem calar. Esses temas nos levam a necessidade de um exame da complementaridade entre os dispositivos próprios de toda  técnica e o trabalho da disposição, própria do movimento do cuidado, do acolhimento e da responsabilidade. Um desses  conceitos é o conceito psicanalítico de impiedade (roughlessness), desenvolvido por D. J. Winnicott; outro, o conceito de crueldade (cruauté), desenvolvido sobretudo por Jacques Derrida, na filosofia. Se a elaboração do primeiro implica no conceito de ambiente e de espaço  potencial, tal como desenvolvido pelo autor, a atingir a sua própria  noção de sustentação, acolhimento (holding), e portanto mais ligados à idéia de disposição, a  elaboração de Derrida, nos leva  diretamente  à necessidade de dispositivos, de técnicas, de continentes,   e daí, de instituições, como é o caso, por exemplo do seu conceito de hospedagem. Aqui podemos incluir o acionamento de dispositivos técnicos que contam com a compreensão de algo a nunca ser explicado, mas esperado pelo humano: o acolhimento da pessoa no que lhe é mais central: sua diferença.
    Aqui passamos a falar de  instituições a considerarem os sujeitos como agindo a partir de  seus grupos internos, sempre atualizados, nas suas novas presenças e no trabalho intersubjetivo. Na impiedade, o mal não existe nos primórdios da vida psíquica: o bebê morde o seio, para sentir, no encontro da gengiva, com aquilo a ser o externo, no início da dentição, e não para destruir à mãe. Na crueldade dos gestos iniciais de apreensão do mundo e com o mundo, infinitivamente a criança pede a repetição dos racontos, ou que se lhe apanhe, continuadamente, um objeto por ele jogado ao chão. Assim, também, depois haverá o reverso, e, como diz Freud no Ego e o Id, há uma compulsão a obedecer o pai, por volta dos dois anos de idade e, portanto, a obrigação atribuída a este, de dar ordens ininterruptamente.


       xxxxx



Poderíamos, então, nos deter em considerações ontológicas da formação e dos caminhos humanos a chegarem à importância do pragmatismo inglês ou à da reflexão francesa com o rigor teórico, a ser  quase uma metafísica –  sem desconsiderar a importância também inesgotável dos trabalhos desenvolvidos pela filosofia, em ambos os paises  – de chegar ao dispositivo teórico ideal. Em ambas as situações, em diferentes movimentos, localizamos a preocupação com um imaginário que nos leva, aí, a uma noção de  todo ,  ou seja, o cuidado da compreensão, no sentido inglês do termo e com os gestos e com as políticas do trabalho do desejo.
 Poderíamos nos aprofundar, por outro lado, em considerações éticas, a apresentarem tantas facetas, também a ficarem sob a mira daquilo que, em psicanálise, chamamos de pulsão de domínio, ou pulsão de empreendimento. Assim, o tema da  impiedade ou da crueldade ficariam amarrados pelo próprio pé, sempre exigindo uma contínua reconsideração de suas bases.
O que salta à nossa consideração, de início, em socorro, é o trabalho de dois outros autores.
De um lado o enorme esforço teórico de René Kaës, na psicanálise mais leal ao trabalho freudiano, a determinar, inicialmente, que um grupo é como um sonho, e que o inconsciente é estruturado como grupo, ficando muita coisa, no sentido heideggeriano do termo, que a psicanálise de origem fincada na psicolingüística, considera obscena, fora da cena da linguagem, mas a ser considerada, compreendida, transformada, trabalhada, infinitivamente, para empregar o expressão de Giulio Carlo Argan,  pelos grupos, em um labor complementar ao da linguagem. Estamos trabalhando com este termo labor, no sentido de Hannah Arendt, para quem o trabalho humano da produção do óvulo e do sêmen, a gestação, amamentação, o suor, e outros trabalhos do corpo,  não podem ser computados economicamente. Penso que nem mesmo por uma economia da libido. Pensamos assim também o trabalho da subjetividade, como o sonho e, sobretudo, da intersubjetividade, como a invenção dos mitos, das ideologias, das utopias.
           Há, também, as novas  teorias do Direito e sua filosofia, lidando com o tema da emancipação além do tema da autonomia - é de se ressaltar, aí, o trabalho de Giorgio  Agamben, com sua crítica à relação existente entre a construção dos dispositivos, para o entendimento, em direção o governo do mundo globalizado, a sacralizar o capital e o mundo das finanças e a fazer o elogio da riqueza. Aqui, defende Agamben, deve haver a organização dos sujeitos em direção à necessidade de se profanar, com o confronto, essa prática de sacralização, para enfrentarmos    a crueldade no tempo atual.
       Georges Bataille nos diz:  “Uma certa evolução da riqueza, cujos sintomas têm o sentido da doença e do esgotamento, termina em uma vergonha de si mesmo e, ao mesmo tempo, em uma hipocrisia mesquinha”. Há ainda os trabalhos de Boaventura Sousa Santos e de Cornelius Castoriadis relativos à emancipação e à autonomia respectivamente.
Detenho-me, agora, em algumas reflexões, sobre alguns momentos dos grupos, da clínica e da vida das instituições e da cultura, com a ajuda de conceitos centrais de René Kaës.
Todas as utopias sociais, como também os sonhos transformados em projetos, passam por  vicissitudes, em que os sujeitos, reconstroem e elaboram, continuamente, o trabalho afetivo e de representação daquilo que pode tornar mais fácil a aceitação de seu caminho e de seu destino. É neste sentido que Célio Garcia diz que vamos aos grupos para perguntar “porque eu?”. A escolha de uma linha entre muitas, em uma empresa, bem como a combinação de várias visões podem estar vinculadas à possibilidade de elaboração de escolhas no trabalho de grupos internos aos sujeitos. Essas linhas estão sempre ligadas a pessoas e a alianças, a vínculos, a cumplicidades.
O trabalho clínico nos revela a intensidade, às  vezes intransponível, desses contratos e pactos. René Kaës no-lo traz de forma irreprochável, no seu caso Céline. Trata-se aí de um trabalho de elaboração do que passa, por gerações,sem poder ser dito, pelo sujeito, a ser ai, portador de sofrimentos im-pensáveis . Esses sofrimentos são inacessíveis por uma teoria do inconsciente enclausurado nos sujeitos, mas decifráveis se pensamos os grupos internos em uma perspectiva intergeracional, ou social, ou no grupo a trabalhar o romance familiar.
Situamos também assim o trabalho agenciado por minorias, por seitas, religiões, como, por exemplo, marca Olga Ruiz Correa, ter sido desenvolvido na elaboração de feridas provocadas pelo  holocausto, em um contexto de trabalho psíquico  grupal institucional,  com pessoas de terceira geração de descendentes, e como vejo o trabalho das religiões afro-brasileiras, na elaboração da violência havida, na escravidão e nas novas senzalas ou quilombos, como situa Joel Rufino,  as favelas.
O Sujeito encena e re-encena, internamente, em um movimento contínuo todas as experiências das situações por ele vividas, desde a mais precoces, quando as tensões vividas, recusadas, ou denegadas,  aparecem e reaparecem  em processos originários, configurando, assim, sempre novamente, “um todo sem limites” imaginariamente protetor. Aí vão aparecer personagens fantasmagóricos “a procura de um autor”, a ser agora o grupo, e  contidos por uma sempre nova demanda de amor de cuidado ou atenção ou acolhimento.  A procura, entretanto, é feita em um mundo veloz, ao mesmo tempo em  que este mundo legitima um conforto da resposta rápida, seduz e  inviabiliza outra legitimação requerida, para uma satisfação com toda urgência.  A compreensão pretensiosa desse todo veloz, pode implicar uma totalização generalizadora, a esconder, na racionalidade, uma agressividade, uma vontade de poder própria do totalitarismo, a dificultar a localização do seu lugar, pelo sujeito, e a possibilidade de uma disposição de luta por seus projetos.  Pode o sujeito pensar num momento que a amizade é sua escolha maior,  de vez que não escolhe onde nasce. Mas o tempo o ensina que é a cultura,  um dês-envolvimento do “grupo como objeto”, a sua escolha mais intensa.
 Na clínica, a pergunta “porque eu faço isto?”, pode, às vezes, revelar uma disposição “a-subjetal”, e ser um movimento  sempre a “remeter a origens”, uma coisa mais ignóbil que nobre, sobretudo consigo próprio.   A experiência vivida por um jovem, pode ser ilustrativa.
Ele diz ter sempre presente um momento em que seu pai fazendeiro, triste, com uma peste que devastava seu rebanho, olhava fixa e tristemente um horizonte perdido, com olhos úmidos. Ao perceber a  presença do filho, retoma a esperança e o olha com doçura. Essa é a lembrança encobridora de um todo formado por um grupo interno ideal.
 Este todo é, assim, uma solda construída, onde passado e futuro, horizonte e presente,   a um só tempo, é vinculo vivido,   na confirmação do brilho de um olhar.   Um todo que tenta recuperar um mundo perdido, um colo originário, onde todo desprazer  teria sido eliminado. A colocação à prova dessa soldagem imaginária, pelas “infidelidades do meio”, pode ocasionar  um fracasso, e o reaparecimento do recalcamento.
 Desde aí, em elaborações subseqüentes, aparece a fantasmação – a construção de cenários a serem atravessados. O sonho da feitura dessa travessia – pode tentar recuperar, de maneiras cada vez mais próximas da realidade, a soldagem e vínculos perdidos, ainda na forma e nas formações e também de movimentos (Bewegungen), impulsos  daquele grupo interno ideal. Isso produz  a invenção do pensamento e da interpretação, construídos ao mesmo tempo em que assimilada a linguagem e sua ligação com o que Freud denominou aparelho da alma (Seeleapparat) ou  aparelho  psíquico (psychyqueapparat).
O percurso do trabalho clínico,  bem como o de todas as utopias sociais, os sonhos transformados em projetos, passam por essas vicissitudes. Pode ser uma ilusão ou um outro triste sintoma,  querer eliminar, como menor, o trabalho do amor pensado a partir do ensaio de vinculações feitos pelos sujeitos. Seria fugir do papel hermeneutico que desenvolvemos na cultura, o papel de “porta sonhos”, que desenvolvemos na sociedades.
A noção de  grupo interno, é   pensada na obra freudiana e seguindo a proposta de Kaës, de forma solidária às formulações sobre os grupos, a massa e a  cultura, desde as formulações sobre “os grupos de neurônios, no seu Projeto de 1896, e desenvolvidas, depois, sob as formulações de grupo de idéias, ligadas a prazeres interditados. Daí a sua primeira   teoria para o inconsciente como cenas e  “grupo de idéias” recalcados,  dos  estudos sobre as histerias, até a formulações a propósito do Ideal do Eu, e seus intermediários grupais, nas formações do Eu e na organização das massas e, mais ainda, até necessidade das encarnação do Ideal no líder, apresentadas nas formulações sobre  “O Homem Moisés, e o Monoteísmo”.   
No percurso da formulação de sua teoria, Freud não se furta àquilo que René Major chamou de uma de-existence, a partir da qual, saltando no vazio, desconstruiu sua origem religiosa, profissional e educacional. Um semelhante percurso parece estar a nos reclamar toda a cultura, para uma  nova  reforma do entendimento.
A pergunta  como aquela,  presente em toda equipe de trabalho “será que já somos um grupo”, nos leva ao conceito kaesiano de “grupo como objeto”, formulado anteriormente, por J.-B.Pontalis e que é trazido, de forma irretocável, na peça “O beijo no Asfalto”, de Nelson Rodrigues, sobre os fantasmas na construção imaginária, para  o que seja o grupo familiar e os grupos de trabalho em instituições. Na peça, toda a família , as instituições e a sociedade enfim,  ficam subsidiárias da imprensa  na seu afã  produzir e vender escândalos.
O contorno a ser construído, pelos sujeitos, sempre em grupo, implica na elaboração de um envelope fantasmático, a ser sempre correlativo de  investimentos pulsionais e atravessado, transformado, desconstruído,  reconstruído. Este trabalho, retoma, diz Kaës, da pisicologia social, um trabalho que foi levado para fora da pesquisa psicanalítica, pelo que esta se dispõe no enfrentamento do trágico.
Devemos ainda nos deter em uma diferença sutil descrita por René Kaës entre o que é considerado como Subjetivo e o que ele nomeia como subjetal.  O primeiro “toca ao sujeito, segundo a lógica dos lugares num conjunto de objetos  psíquicos e segundo a atividade de representação-interpretação que o sujeito efetua quanto a sua relação com esses lugares.” Isto o implicará em níveis de intra e intersubjetividade. Ainda não pode situar um real sentimento de des-locamento, de inadaptação, uma vez que há uma identidade, uma submissão ao lugar, com a ordem de sujeição ou alienação.  Aqui podemos observar toda a questão da segurança perseguida pelo sujeito.                   O segundo, o conceito de Subjetal, “designará a posição, do sujeito no reconhecimento de sua relação singular, intra-subjetivo e intersubjetivo, com o que o constitui, com as ordens a que está submetido, sobretudo com a ordem determinada do Inconsciente: a pulsão (necessidade), a fantasia (desejo), o outro, e a realidade externa, naquilo em que ela não é realidade psíquica . A-subjetal poderia qualificar o sujeito quando a distância entre o lugar ocupado e o lugar representado é abolida.” Este conceito, localiza o sujeito com possibilidades, com disposição  - e não somente submetido a dispositivos -  de surgir do inconsciente, das transferências, de “saltar”, para empregar a interpretação de Ivan Ribeiro ao texto de Camus – “há muitas maneiras de saltar, o importante sendo saltar”.
 Localizamos na generosidade desta noção, o entendimento da real possibilidade de liberdade.
Um fragmento da clínica pode ilustrar a percepção de um sujeito com relação a sua subjetividade e sua subjetalidade. Depois de muitos anos de trabalho e reagindo a intervenção: “ está difícil, para você”, diante de várias mudanças de horário de protestos com relação ao pagamento, depois um longo tempo,  ensaiou um momento de transferência negativa, quando gritava, se agitava, revelando um tumulto e uma desorganização na compreensão de seu momento projetivo. Aos poucos, a agitação foi dando lugar a uma calma imensa, quando veio um tempo, antes impossível, para falar de momentos conflituados do seu  romance familiar, da realidade economico-financeira do pais, da situação precária e turbulenta no trabalho e do dispêndio de energia com as convulsões dolorosas em sua vida erótico-amorosa e, bem depois, pode falar  de um encontro agradável em uma “cidade do interior”. Ele já havia se referido várias vezes a minha origem interiorana, facilmente identificável no meu sotaque. Havia, agora, o entendimento  concomitante para um caminho “normal” na sua realidade, seguido e a seguir no mundo em que vive. O horário e  o dinheiro não foram empecilhos,  a esconderem  a obra do tempo  e a intensidade do investimento. Isso possibilitou a retomada do andamento do trabalho, pois, não foram mais , horário e dinheiro,  lugar para o aparecimento denegado de um mundo estreito e  uma mesquinharia, a obrigá-lo a uma enorme sovinice, sobretudo para consigo mesmo, diante de um desvalimento - sobretudo pelo intenso percurso por ele feito  na cultura -  um desamparo, de difícil continência.
Bibliografia
Argan, Giulio Carlo. 1999. Clássico anticlássico o Renascimento de Brunelleschi a Bruegel.Companhia Das Letras. S. Paulo.
Arendt, Hannah. 1995. A condição Humana. 7ª Ed.revista. Forense Universitária. Rio de Janeiro
Batailhe, Georges. 1967. La Part Maudite, precedée de  la  notion de dépense. Editions Minuit. Paris. 1975. A Parte Maldita. Imago.Rio de Janeiro.
Boons, Marie Claire.1979. “Le un et le tout en politique”. Cahiers Confrontation  Nº 2.  Paris.
Bergstein, Lena, 1998. “A Paixão de ser outro”. Ed. Museu da República, Rio de Janeiro.        
Borges, Jorge Luis. 1996. Elogio de la Sombra. Emecé Editores. B. Aires.
Brant, Luiz Carlos. 2004. O Processo de Transformação do Sofrimento em Adoecimento na Gestão do Trabalho. Tese de doutoramento. Ensp. Fiocruz. Rio de Janeiro.
Correa, Olga Ruiz, 2000. O Legado Familiar. Editora Contra Capa. Rio de Janeiro.
Costa, Monica Silva da. 2003. Reforma Psiquiátrica, Transformações e limites nos modos de lidar com a s situações de crise: uma análise a partir das experiências de dois Serviços de Atenção Psicossocial do Rio de Janeiro. Ensp.Fiocruz. Rio de Janeirol.
Derrida, Jacques, 2001. Estados d’Alma na Psicanálse. Escuta Rio de Janeiro. 
Fairbairn, W. Ronald D. 1980. Estudos Psicanalíticos da Personalidade. Ed. Interamericana. Rio de Janeiro.
Freud, Sigmund..1976f. "A negativa." (O.C.) 19:290-300. - 1948. Imago Editora. R. de Janeiro. "Die  Verneinung" (1925). G.W., 13:9-15. Imago Pulishing Co. Londres. 1946
Freud Sigmund,  1914 .  Em direção `a incorporação do Narcisismo. (O.C). 14:77-108.-1969. Zur Einführung des Narzissmus. (G.W.) 10:137-170.  
Freixa, Marcelo. 2006. “Violência e Sociedade”. Mesa redonda. Ensp.Fiocruz. Rio de Janeiro.
Lebrun, Jean-Pierre. 2002. “ Une Logique d’enfer”. http://www.freud-lacan.com/articles/article.php?id_article=00418.
Kaës, René. 1993. Le Groupe et le sujet du Grupe. Dunod. Paris. O Grupo e o Sujeito do Grupo. 1997. Casa do Psicólogo. S.Paulo.
Rosa, João de Guimarães.1984. GRANDE SERTÃO: VEREDAS. Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro. 
--------------- 2002. La Polyphonie du rêve. Dunod.Paris. 2004. A polifonia do sonho. Idéias & Letras. Aparecida. S.Paulo.
Santos, Milton. 1996. “Metrópole: A força dos fracos é seu tempo lento”. In Técnica Espaço Tempo. Globalização e meio técnico-científico informacional. Ed. Hucitec. S. Paulo.
Valadares, Jorge de Campos e outros. 2000. “A diversidade dos seres vivos e das sociedades e o comportamento humano”. In Anais do I Seminário Nacional de Saúde e Ambiente no Processo de Desenvolvimento. Série Fiocruz Eventos Científicos. 2.  Rio de Janeiro.
Valadares, Jorge de Campos e outros. 2002. “ Proximidade e distância necessárias ao ser humano para o convívio e para a diversidade” Série Fiocruz Eventos Científicos, 4. Rio de Janeiro.
Valadares, Jorge de Campos e outros. 2006. “Ambiente, Saúde, Cultura e Educação: Utopias em uma Sociedade de Mercado”. No prelo.
Valadares, Maria Helena. 2006. Atendimento Coletivo. Seminários do Ambulatório do Setor Regional Noroeste. Prefeitura Municipal. B. Horizonte.
Winnicott, D.W.  1974. "Fear of Breakdown." In International Review of Psycho-Analysis. No. 1 (103-107) .
----------------------. 1975.  O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago Editora. Rio de Janeiro.
Yassui, Silvio. 2006. Rupturas e Encontros. Desafios da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Tese de doutoramento. Ensp.Fiocruz. Rio de Janeiro.

Jorge de Campos Valadares.
Psicanalista, membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. Doutror em Ciências. Pesquisador Titular da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. E-mail: jorgecvaladares@uol.com.br



Nenhum comentário:

Postar um comentário