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quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Espaço-Ambiente e Situação do Sujeito: Corpo, Cultura e Desamparo.

                     
 Espaço-Ambiente e Situação do Sujeito:  Corpo, Cultura e Desamparo. 

Jorge de Campos Valadares

Abandonado como los muelles en el alba. Es la hora de partir oh  abandonado”  

Pablo Neruda.


Temos nos perguntado, perplexos  sobre a violência, o susto contínuo no cotidiano atual das pessoas e que tem mobilizado grupos, políticos e pesquisas universitárias. Sabemos com Freud, que o destino da cultura, em torno da questão não é dos mais animadores. No seu magistral livro o “Mal Estar na Cultura” nos mostra ele, os acréscimos  na agressividade que vêm inexoravelmente com o progresso da civilização, e a inevitável retomada do sistema motor em detrimento do  “adiamento no pensamento” (Denkaufschub).
  Chegamos a perceber, com a psicanálise,  a agressividade como constitutiva da vida emocional – sem ela seria impossível o psiquismo humano – e mesmo nós, psicanalistas, não costumamos nos entregar ao espanto necessário para nos colocar e examinar a questão. Já tão ameaçados, não conseguimos a melhor postura para um analista. Dizemos espanto, no sentido dos filósofos, posição de capital importância para o exercício da clínica e não pensamos assumi-la diante de uma “questão social.”
Penso em um deslocamento que nos levasse, pelo menos teoricamente, a um início, a uma formulação inicial e a uma retomada da questão hoje por demais estudada de forma viciosa. É preciso que tentemos algo novo.
Freud, no texto da Verneinung,  formula  uma síntese impressionante sobre o nascimento do pensamento. Relaciona o nascimento do ato de pensar à contenção do sistema motor. Ai, haveria um ínfimo “transporte de cargas, a partir de um “adiamento”, em que essas cargas seriam investidas de sonho e do gesto do pensar.
Digo gesto e ressalto: o corpo, mesmo ai, está presente.  Costumamos dizer, quando nos referimos ao pensar “atuado”, aos retornos em pensamentos, que  são assim tomados por uma compulsividade maior, sobretudo no pensamento do chamado “obsessivo”.
Cada dia  a clínica pode nos convencer mais: os diagnósticos, os delineamentos  para os quadros clínicos, se ajudam para alguma reflexão, produzem, nela mesmo, um estrago sem limites. O sistema motor está  em qualquer  gesto do pensar. Está no homem, do nascimento à morte trabalhando na hominização. A compulsão no gesto ou no pensamento dizem de um momento da organização que pode indicar uma insistência e, com isso uma esperança, como nos ensina Freud no Totem e Tabu. É um movimento do sujeito.  O eu corporal nasce de um movimento da transformação do corpo em instrumento de viver. A mão se transforma em concha e  o primitivo apanha água, em pinça e retira um parasito, etc. Essa “evolução”- não usemos a riqueza do pensamento estrutural como lei policialesca para nosso pensar - da filogenia é repetida na ontogênese e podemos vê-la no suceder do trabalho cínico: o corpo esquecido vai sendo situado como espaço da vitalidade da vida, lugar de representações, mas antes  de presença do sujeito. Joyce McDougall, examinando a clínica de pacientes psicossomáticos, nos fala de ressentimentos do corpo – questões ligadas à “experiência de satisfação”, “apaziguamento” e à “atenção específica”  todas muito  vivas, desde o nascimento da teoria psicanalítica, e indissolúveis descobertas do  campo freudiano – diferentes de uma elaboração fantasmática. Há ai um curto circuito – “ ser neurótico é já uma conquista”, “é possuir algum capital”, “uma retenção, enquanto no analisando psicossomático existe uma descarga direta.    
      Não existe pensar sem um “movimento” que se expressa desde a postura, espacial e temporalmente,  nas pausas no andar, no piscar, a inclinação do rosto e seu apoio com as mãos, que é tema infinito  para os escultores, pintores e poetas,  até a tentativa de implicação do outro, no gesto muito dissimulado da argumentação e das inflexões da voz ou da pontuação, e que aparece – note que não digo re-aparece - no discurso escrito, com frases ou  parágrafos mais ou menos diretos e curtos...  São vieses do gesto, o corpo que apenas se mostra, sem saber falar, falando de profundidades. Walt Witmman  nos diz que se existe uma alma, sua profundidade está no corpo. É onde sentimos dor e prazer, o que interessa na vida. Porisso o corpo é nossa primeira morada. É enquanto ele é um feixe de músculos, que começa a nos conter. No inicio foi o ato. Lembremo-nos que o verbo é o lugar da ação. Mas Goethe e Freud  disseram “ato” para falar da ação de dar forma, a formação inicial. Trata- se aqui da inteireza identitária. Aquela continuidade egóica, difícil de mudar, quue nmantem nosso equilíbrio psíquico, onde o “artista de si mesmo” tem o sentimento de identidade. Esse sentimento é uma invenção tão importante quanto seu movimento identificatório, é o lugra de sua coesãso, sua colusão de onde sentinmo-nos situados, invadidos ou acolhidos.             
               Na escrita, não esqueçamos, o gesto final de transformar o corpo em cultura, depende da voz diante de um gravador, ou diante de uma secretária, de uma mão e dedos diante de um teclado. Qualquer músico, os pianistas à frente – a música e seus sons parecem querer representar o mais profundo em nós,  e Freud chegou a dizer que o grito é  nosso primeiro objeto, como lembra a leitura cuidadosa de Maria Isabel Monteiro – tenta dizer incansavelmente, como o pessoal do jazz: “You have to bleed”. Não é somente uma tentativa de nos transmitir que é somente com “blood sweet and tears” que se constróem as páginas da cultura. É uma forma de falar onde se trata  de dar “gracias a la vida” pelas “andança dos pés cansados” e   que cada movimento de um dedo, de encontro a uma corda, para arrancar-lhe um som novo, depende de algo que extraído das entranhas do sujeito.
Renato Caporali, no seu impressionante livro Ética e Educação, nos traz, de forma  límpida, a questão da violência e da necessidade de retomadas da reflexão.
No interior de Minas, hoje, há cidade com ganchos ao lado dos quadros negros e varais onde alunos são dependurados por insubordinação. Isso não é só Minas e não se trata somente de uma terrível “sanção moral” que, ali, encontrou essa manifestação aberrante. Há outras formas desse terror e a criatividade humana nisso, nós bem o sabemos, também pode ser inesgotável. Em alguns lugares as crianças são despidas, e colocadas diante dos colegas.
Onde existe humilhação, está aí  perversão, nos diz Carmen Da Poian.
Caporali  inicia seu relato  com a descrição das circunstâncias de um tapa ,  de um aluno de onze anos em um colega, que culmina com um soco de punho serrado desfechado contra a professora .
A revolta vem em uma sociedade em  que as pessoas  não são capazes de se deter e pensar de modo co-movido. O ideal das reflexões hoje é que se tenha uma isenção a toda prova. O projeto acadêmico é falar com perfeição do humano deixando de fora o que lhe essencial: o afeto, a comoção. A comoção se transforma em ex-pressão do ressentimento, um vez que a significação do gesto ou será absorvida por sansões institucionais ou perdem a oportunidades de falar de presenças ou  de situ-ações, de ações situadas.
 É inútil querermos um pensamento perfeito.
Mas o que realmente acontece é que vamos “arredondando” os pensamentos, para que caiba na cultura. Por um instante ele nos parecerá agradável e o nosso amor próprio  os incorpora como algo que nos funda. É como se fossemos nos mesmos nosso pensar. Mais uma ilusão. O corpo é o mais profundo e infinito em nós. É   por onde nos sentimos e sentimos o mundo. O corpo vivo humano sempre manca, é claudicante. Guimarães Rosa , nos diz : “É no bocal da idéia de contar que erro [faço uma errância ?] e troco – confuso assim”. Se “les non dipes errent”, como nos ensinou Lacan, os tolos humanos “mais ainda”. 
      Aos poucos, aquele pensamento tão redondo,   não nos satisfaz mais. Torna-se pequeno para nos conter. São assim os h;umanos.
      O nosso pensamento,  se adia o sistema motor, adianta nele a nossa entrada na cena da cultura. Construímos assim, o nosso nome e, ao apresentar nossa forma de pensar, nos apresentamos e, então, somos nomeados.
O corpo, nosso primeiro e mais importante instrumento de viver é reinventado a cada momento, desde a posição ereta, até o rosto e suas expressões, e as mãos, como extremidade dos braços, que ora, como dissemos, são pinças, ora conchas, ora limites de uma alavanca, ora uma pétala de carinhos, ora em prece uma tentativa de elevação do que nos pesa mais na corporalidade.
 Essa reinvenção contínua situa nossa primeira morada, lugar de  insistências e, nos seus limites, exige outros instrumentos e as técnicas que os criam. O vestuário, a casa, o veículo. São as necessidades e os sentidos que nos dirigem e são puxados pelas seduções do mundo. Vexados por tanta insistência, “de-moramos”.
São essas tensões o espaço de nosso desamparo inicial, de onde devemos nos inventar, inventando nossa morada. Onde fincamos nosso pé, nossa raiz e onde ficamos, repousamos e permanecemos.. É o que o francês chama de demeure. 
Da profundidade de um “eu corpo”, e seus instrumentos nos atiramos para o abismo onde procuramos nossa verdade. O poeta Schiller disse que “a verdade habita o abismo” e o corpo é  ao mesmo tempo, sua borda, seu limite e sua profundidade.

Masud Khan, falando do que chamou do “Rancor da Histérica”, nos diz que essa estrutura – acredito que ele estava descobrindo nossa forma inicial de nossa situação como sujeitos -  se inicia com os “aparelhos sexuais do eu corpo”. Esses aparelhos são usados pelo sujeito que tenta fazer frente a precariedade do eu pela invasão sofrida por alguma sedução. Com eles, tenta o sujeito convocar, de  todas as maneiras,  o outro, para protegê-lo de  um abandono sempre retomado pela própria ineficácia do seu próprio gesto
Esse gesto é sempre uma infindável repetição, como em qualquer situação traumática,  de onde se tenta uma elaboração. Aqui, entretanto, a repetição vem de forma   equivocada , pois o trauma constitui-se justamente onde o erótico  está como ato sexual, no lugar onde deveria vir como símbolo de carinho, inibição de alguma energia, a ser feita “no alvo”. O sujeito pleiteia a retomada da sedução sexual, quando de fato queria ser acolhido como desamparado. A paciente de Masud Khan chega a dizer que em suas relações amorosas tudo o que consegue é “ser tratada como uma prostituta” 
Também Joyce McDougall pensando a psicossomática nos ensina uma nova forma de ver as tentativas, já presentes no  corpo de uma elevação das precariedades e de saída do desamparo a que está sempre, submetida  a vitalidade corporal. Tentando percorrer o caminho entre a estase e o êxtase - que ela traz como uma “ek-stase”, uma saída da estase, portanto -  e pensando em alguma formulação que nos desvie dos caminhos já viciosos do pensar, McDougall nos mostra que o sintoma é ponto de chegada e de saída: a elaboração psíquica é o  trabalho responsável pela criação do sintoma, como queria Charcot mas o sintoma é também uma falta de elaboração psíquica. Mas pode haver algo silente, que não fala no corpo, - o  psicossomático - e que vem de uma estase que é, ao mesmo tempo um  êxtase.
 E o corpo sempre conservará  seus mistérios, como já havia advertido Freud, quando nos dizia que a passagem da hipnose para a teoria da transferência deixava de fora inúmeros enigmas. O corpo conserva o profundo da sabedoria inconsciente talvez a favor de nós mesmos. Aí a profundidade consiste em calar-se quando o sujeito se submete, dentro do campo de seu sintoma, a performances mais ligadas ao consumismo do que ao seu projeto desejante. Pensamos  aqui, por exemplo, em certos casos de impotência.
   Nesse momento poderíamos dizer que o sujeito suspende ( aufhebt) provisoriamente da consciência, os movimentos de significação, onde chegaria, em sua singularidade a criar caminhos próprios, introduz a inércia como contra-movimento, e no lugar de dar continuidade as formações (bildungen) que chegariam à sua apresentação, retira-se da cena.
Não adianta protestarmos contra o tchan, os filmes de Schwatzennegger, Xuxa, Angelica,etc. Elas estão mostrando um sintoma. Devemos tentar entendê-lo. Não há representação possível de acolhimento, sem um lugar, um espaço feito de lugares, como deve ser o corpo humano. Esse espaço de memórias e convívios, de prazeres vitais, é o corpo e suas bordas sempre reinventadas, sempre re-apresentadas, re-vividas, no espaço seus horizontes, possibilidades, e barreiras. 

A noção de profundidade, nos mostra Argan está ligada à noção de perspéctica. A renascença italiana com Brunelleschi nos traz os momentos iniciais do romantismo. Para andarmos devemos voltar. Por isso a porta do batistério  do batistério de Santa Maria dei Fiori, em Florença traz o sacrificio de Isaac no lugar de trazer o batismo de Cristo, embora em um templo cristão.
Essa noção de perspéctica e de profundidade, depende também de presenças de  possibilidade de separações como nos mostrou Sami-Ali. Não somos todos nós, os que conseguimos ver um desenho em três dimensões feito em uma folha plana. Em crianças, às vezes é possível ver a angústia que se instala diante algo que aparece e desaparece como as saídas da mãe, que chega e sai sem se dar conta de que está ali alguém para quem ela é aquilo que da alma ao mundo.
                        Sami-Ali nos diz: Freud tem razão, não encontramos nada, apenas reencontramos. Mas para reencontrar devemos nos encontrar. É a importância igual da presença e da representação. Do corpo que caminha, na cultura em direção a linguagem. Mas se esta é ponto de partida e ponto de chegada,  o corpo “está no meio da caminhada”. Resta descobrirmos que não ocupa este lugar, como uma pedra no meio do caminho, mas como um instrumento, um via régia para a “vitalidade da vida”, como nos dizia Ortega y Gasset.
   E toda a teoria ou prática que desconheça isso, parece não  caber mais em nossa época.


Jardim Botânico, maio de 1999.


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