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quarta-feira, 6 de agosto de 2014

PROXIMIDADE E DISTÂNCIA NECESSÁRIAS AO SER HUMANO PARA O CONVÍVIO E A DIVERSIDADE



PROXIMIDADE E DISTÂNCIA NECESSÁRIAS AO SER HUMANO PARA O CONVÍVIO E A DIVERSIDADE1


Jorge de Campos Valadares (coordenador)2

2Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental da Escola Nacional de Saúde Pública – Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões, 1.480 – Manguinhos, Rio de Janeiro – RJ CEP 21.041-210



“Il faut de tout pour faire um monde”
É preciso de tudo para fazer um mundo
Aforismo francês citado por Jacques Prévert no filme Les Enfants du Paradis 




               Os participantes do grupo vêm de várias regiões do país e têm, em sua maioria, vinculação acadêmica.  Os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 em New York e Washington e a invasão do Afeganistão tiveram uma grande repercussão sobre o grupo, em sua última reunião, no dia 14/11/2001.  O grupo quis trabalhar a questão da diversidade através do exame da produção e da difusão do saber atual, e as proximidades e distâncias que os sujeitos humanos mantêm de si mesmos e do mundo em que estão.  Essas proximidades e distâncias devem ser examinadas no momento da produção do saber e dos gestos, sobretudo no que tange ao convívio com o diverso, tema central da discussão do grupo.

               Segundo alguns membros do grupo haveria uma fadiga na teoria.  Para outros, essa fadiga diria respeito aos sujeitos que pensam: os sujeitos estariam apressados, o mundo estaria embriagado de representações, uma embriaguez de palavras, e teria perdido o rumo diante da quantidade e da velocidade das informações.  Procuramos a palavra que nos situe, pois é ela que instaura o lugar de onde se fala e onde deve ser enfrentada.


               Devemos pensar a produção do saber e sua difusão.  O ato não deve obscurecer a consciência.  Se um operador de bolsa desconhecer a função ou as consequências de seus atos, pode levar a cultura à barbárie.  E uma barbárie pode levar a outra barbárie.  O saber não deve vir unicamente da expressão, de atos, de gestos.

               Uma teoria do social deve ordenar o valor dos atos: saber que os bancos estão mais protegidos não justifica o assassinato de quem vai ao caixa eletrônico por causa de cinquenta reais, a título de se considerar este gesto um gesto revolucionário.   

               Não se trata de dispensar a teoria.  Deve haver outro modo, outro “como” construí-la.  Nas artes o conteúdo se ajusta à forma.  A teoria não pode ajustar-se a uma forma, não se deve cortar aqui e espichar ali aquilo que os saberes foram acumulando no mundo.  A teoria não deve se ajustar à nossa ignorância como um hóspede deveria ajustar-se ao leito de Procusto.  O senso comum – que exilamos dentro de nós quando fazemos a teoria, mas está sempre conosco – recusa-se a esse saber de justaposição, em que a representação – ou seja, ato de trazer para o presente o que já foi saber sobre a experiência do mundo que procura dispensar o convívio, um esgotamento do saber que todos os que não sabem deveriam apenas aceitar, por imposição, em um gesto que é sempre essencialmente político.  Um gesto que simplesmente responda a outro gesto, procurando assim a justiça, não se justifica.  Defender isso seria ir a favor do fim da vida humana.    O que se impõem não é a justificativa: para que a expressão produza efeito, produz criação, o diálogo e o diverso devem ser convocados.  Não se trata de sim e não, que apareceriam como absolutos, mas do trágico que sempre convoca o sim e o não ao diálogo na vida humana.  Aí se instala o conhecimento.

               Porém, há violência revolucionária e violação gratuita do convívio.  A arte pode trazer algo novo em sua forma.  Ligada ao econômico e à telemática, ao vídeo, a nova arte, fugaz, pode interferir no sistema virtual de informações (F. Jameson).  Somos a cauda da globalização e produzimos um saber de dominados, na universidade, no cotidiano.  A arte poderia reverter, no virtual, o sistema? Como registrar o inapreensível? Os bens intangíveis devem ser tombados.  No nordeste, tombam-se danças, cirandas, brincadeiras, pagam-se salários a mestres cantadores e oferecem-se bolsas para aprendizes.  O bem deve ser universal pelo que guarda de diferente, de regional.

               As palavras – como a palavra “globalização”, que sempre implica em uniformidade – foram moduladas por seus criadores.  A arte misturaria experiências regionais novas com algumas experiências da política local, como no Teatro do Oprimido, na poesia apresentada em praças públicas e em outras práticas mostradas no Fórum Social Mundial.  A selvageria, na história, deseja natureza. O conforto dado pelo amor próprio, pelo “sentimento de si mesmo” (Selbstgefühl, Freud) é uma energia, uma tensão a ser reservada para a crítica e para as escolhas.  Na uniformidade não há escolhas, não há desejo e, portanto, não há sujeitos.

               Para que se produza o conhecimento é preciso abolir a pressa.  Um novo diálogo deve ser instalado, em diálogo em que entre um pensar e um fazer não haja demora.  Qual deve ser nossa postura diante da miséria? Todos têm o direito de viver.  Há gente morrendo de fome.  É importante desejar a lei e o dever.  O Brasil pode oferecer justiça social a seu povo, dar aos brasileiros um mínimo de dignidade.  Viver vem antes de qualquer pensamento, pois é necessário viver para se pensar. Toda a humanidade quer sobreviver.  É hora de parar, a fim de dar a todos o direito de viver.  Fazer o bem é fazer justiça material.  Depois de cada um receber o que precisa para ter direito à vida, cada um irá inventar uma felicidade.  Mas antes, é preciso sobreviver.

               Há a fome, como dissemos, e pensa-se, hoje, que ela é funestamente orquestrada.  Os três homens mais ricos do planeta possuem uma renda equivalente àquela dos 48 países mais pobres, com 600 milhões de pessoas, e os 200 mais ricos possuem a renda equivalente àquela de 45% dos habitantes do planeta, isto é, 2 bilhões e oitocentas mil pessoas, conforme relatório do Ministério do Meio Ambiente.  Assim, o mal se apresenta com uma radicalidade indigna.  E não há possibilidade de uma proximidade afetiva com esse mal.  No pensamento freudiano (Freud, 1925) o sujeito se constitui através da exclusão do mal que, então, passa a lhe ser externo.  Seria impossível para o sujeito, na fragilidade de seu nascimento, no extremo da necessidade, acolher como internas e como constituintes da pessoa a destruição e a frieza do mal.  A tentativa de eliminação da diversidade de pensamentos em nome da aceitação de uma realidade indigna é impensável para o humano.  O diverso pode ser estranho e provocar estranhamentos e ser excluído. Para um sujeito, entretanto, deve ser conservado vivo, pois o mais estranho, o mais inquietante está no mais profundo de sua alma, e sua profundidade é sua maior preciosidade.  E o seu mais profundo está, também, fora, na pela desdobrada, como intangível, inapreensível, embora possa estar muito próximo.

               A fome é, pois, um mal radical.  E a fome pode destruir sem piedade, pois a criança, o enfermo, o lesado e o desajustado mental podem não ter como produzir seu próprio alimento.

               Uma teoria atual deve implicar pois uma globalização a partir da base, além de uma globalização a partir do topo, para empregar os termos de Boaventura de Sousa Santos (2001).  Isso implicaria em uma experiência de teorizar em pequenos grupos abertos a várias participações: diferentes pertencimentos, diferentes instituições seriam representados nesses grupos, onde tentaríamos ouvir o murmúrio das massas.  Haveria um ecumenismo possível para o pensamento, com base no enfrentamento do precário, na proximidade, no afeto (Helena David).  Isso enriqueceria a vida e afastaria algo do mal-estar.

               Uma parte do grupo pensa haver urgência em atender o que é urgente, pois “quem tem fome tem pressa” (Betinho).  Há um sofrimento desnecessário.  Todos devemos ser pobres para não haver ninguém miserável.  As outras considerações, mais abstratas, são do reino do insondável, o infinito.

               Devemos reconstituir a nossa dignidade e a dignidade do outro.  Ao fugir, nas teorias, estamos sendo indignos.  Aproximar-se das pessoas é não considerar normal uma criança de dezesseis anos estar armada às dez horas da manhã.  O homem precisa espantar-se, precisa assombrar-se, precisa aproximar-se da miséria.  Não gostamos de ver o que nos faz sofrer.  Mas somente daí sairão uma outra prática e uma teoria.  O que nos une? O que une as pessoas? Ainda somos bárbaros? São perguntas essenciais.  Deletamos agora, também, a dor.  Ela chega também pela internet, na imagem de um bebê a morrer no lixo diante de um urubu a aguardar.  É impossível guardar essa imagem.




               Mas viemos aqui falar de tudo e, por um momento, esquecemos mesmo a nossa casa.  Nossa casa é, nesse debate, nosso país.  Que não é a América, que não é a Europa.  Estamos mais próximos da África.  Considerando isso, estaremos mais próximos de nós mesmos, de nossos infinitos recursos.  Afastando-nos disso nunca seremos América ou Europa.  Temos muitos recursos.  A religião do Candomblé nos ensina que temos de cuidar de quem cuida de nós.  Temos de cuidar da terra e dos Orixás.  Todos os homens têm seu Orixá.  Os Orixás devem ser cuidados para acabar com a peste e a fome.  Eles aparecem sob diversas formas.  E cuidam de todos: crianças, adultos, idosos.  Metaforizemos essas crenças e teremos, independentemente de crermos, uma infinita mina na cultura.  O documento que elaborarmos deverá ser uma ponte entre as gentes.

               Havíamos partido, na reunião de maio de 2001, da necessidade de defesa de pontos de vista diferentes.  Crianças delinquentes não podem ser julgadas apenas por um tribunal togado.  O vizinho, os amigos, os pais, a professora têm algo a dizer.  A verdade é construída no grupo.  E a lei é construída no Direito, sempre uma direção escolhida pela cultura.  A partir daí se mantém o diverso, como consequência. 

               As questões iniciais, fundamentais, foram surgindo ao longo da discussão.  Não podemos dar-nos ao luxo de desperdiçar nenhum saber.  Um violeiro do nordeste sabe a razão pela qual mantém sua cabeça de pé melhor do que um intelectual pedido a realizar pesquisa sobre cultura popular no seio da nova “crise do entendimento”.  Hoje a universidade produz mais em termos de saber, do que alimenta, em termos de dinheiro, a indústria de computadores?  Um professor pode ser mais frio, mais distante em uma aula,do que outro professor a se comunicar com os alunos através de um e-mail? Essa distância do primeiro professor não seria necessária, assim como a frieza o é a um cirurgião? Não sabemos.    

Graças à informática dispomos de um novo e monumental instrumental de aproximação das gentes.  Mas esse instrumental também pode afastar as pessoas.  A formatação pela mídia pode conduzir, como dissemos em nosso documento anterior, a uma formolização em virtude da tentativa de eliminação das diferenças.  Avaliar o valor das inovações técnicas exige um tempo, uma disposição de brincar, de catar imagens – como diz a cineasta Agnes Carda – um tempo de juntar as representações, de vivificar as virtualidades, o que exige mais do que aquele “levar-se demasiadamente a sério” do cientista e do pensador nos tem permitido.

               Sabemos que o saber não deve ser mais produzido atrás de portas fechadas, mas no choque das idéias dos pensadores da cultura – que deve ser amortecido e elaborado – com as do senso comum, como nos tem dito Boaventura de Sousa Santos.

               Quais são os temas prediletos do sendo comum? As religiosidades, as ausências de ligações e as religações.  O bem e o mal, as religiosidades e o ateísmo.  Existem o bem e o mal e seus seqüestradores? Ou é tudo um campo dialético em que os extremos se atraem e se transformam, continuamente, um no outro? Há os que pensam que as religiões, com a riqueza dos seus ritos e mitos, contribuem mais para a subjetividade do que as psicologias e suas técnicas

               Assim poderíamos pensar em uma educação à distância através de cartas? Em trocas vivas? Como em um romance folhetim vivo, as mensagens seriam mais do que um banco de dados daquilo que a sociedade e/ou as intimidades produzem em torno de um tema? Isso implicaria em um trabalho, uma elaboração no seio da cultura, elaboração através da qual a comunidade pensante e as fermentações da massa pudessem deter esse movimento de voracidade, movimento a emergir das tecnologias impostas pelo topo, sempre com o intuito de “abocanhar uma fatia cada vez maior dos mercados e consumidores de informação”, valorizados em sua quantidade.  Como Paulo Freire, o grupo não tem uma “concepção bancária de educação”.

               A educação a distância – imposta, por exemplo, pela impossibilidade de deslocamento – deve estar à disposição do servir, como se dá quando um auxiliar sanitário transmite uma informação a um habitante da floresta amazônica.  O trabalho pode até cobrir uma parcela maior da população, mas não deveria estar acompanhado da preocupação com a “economia de escala” – onde tudo girasse em torno da lógica do custo – ou com uma escalada de sucesso desse ou daquele “método”.  Com essas práticas a sociedade, que procura melhoria e progresso, tem somente chegado ao medo e à incerteza.
                  
               A velocidade tem produzido doentes, pois o tempo do sujeito é um tempo lento.  É um tempo de agregação, em que o ser radical de cada um não é atropelado pela pressa do outro.  Infelizmente, não temos tido mais tempo para olhar, para a presença do olhar, ou para o brilho do olhar que vem do encontro profundo de raízes de cada um no seio da cultura.  Para o ressoar, no mundo, de verdades abissais, das quais as pessoas não podem abrir mão.  Sem o fundamento dessas verdades nenhum saber se implanta.  E verifica-se, hoje, uma cópia, uma adaptação ao que existe.  É necessário separar, provar, degustar o diverso.  Devemos estimar o que está se perdendo e o que as pessoas não tiveram oportunidade de provar, de ver e de sentir.  A memória empobrece se é constituída de poucas experiências.  O mal se instala com a pobreza da memória, do emocional, em relação ao que se dispõe ao sujeito, para suas recordações, suas lembranças e saudades.  Essas recordações estão ligadas, como mostra a etimologia, ao seu mais profundo, ao seu coração.

               Isso implica um contato profundo de cada um com suas fontes, com o fundamento, com o solo daquele que se dispõe a falar.  Ir ao distante somente é possível se se vai ao profundo de si.  A questão central não é organizar dispositivos de fala, “meios concretos” de organizar a fala, mas aproximar esses instrumentos, esses dispositivos, essas técnicas, das disposições e das disponibilidades de cada um.  A diversidade é gerada e desenvolvida somente quando há possibilidade de fundamentos.  Fundamentos revisitados e criados.  Mas isso se dá quando, no centro de convívios, não há um eco no silêncio (Delory-Monberger) com relação ao que se tem a recordar.    

               A importância do olhar e da visão, e da perspectiva – como ressaltou Freud (1856- 1939), depois de Brunelleschi (1377-1446) – é essencial para o sujeito e se instala no seu “lugar” de mirada, no seu ponto de vista.  A visão é um sistema mental antes de ser um sistema da ótica, da física.  É uma ação de situar horizontes, profundidades, de escolher o que deve ser aumentado, o que deve ser diminuído e até denegado.  A fonte de um ato de ver é encontrada in situ, no gesto de se situar.  É o convívio que vai possibilitar memórias de acolhimento, de inclusão, de sentir-se no mundo, que vai possibilitar a cada um “pisar na cena” e, também, tomar a palavra.  Lembrar-se de antigos acolhimentos calorosos seria, em grupos onde o encontro é frígido, uma dor insuportável.  As imagens apresentadas inicialmente para provocar um encontro, um diálogo em grupo, devem ser sempre esfaceladas, não cultuadas, para que a vida, pretensamente enclausurada, possa aparecer.  Hoje as imagens, dispostas como mercadorias, são cultuadas de modo a situar os sujeitos como observadores, e mesmo adoradores, assujeitados.

               O sujeito está hoje como sempre o foi, a ser construído pela técnica.  Há uma trucagem, uma esperteza organizada, uma “arm-ação” (Ge-stell, Heidegger, 1889-1976) na construção do projeto do sujeito, de seu sonho, que faz frente, que contorna a técnica da natureza humana e da cultura.  Hoje, porém, a tecnologia corre mais rapidamente do que nunca.  Assim, os processos a pensá-la exigem outro tempo.  Existe, inclusive, a urgência de uma bioética que, entretanto, corre sempre o risco de ser engolida pela biotecnologia e de se transformar em uma técnica de existir, de construir “carreiras”, especialistas, normas, comitês, cursos, “produtos”.  Não se deve construir ideais que, de fora, seriam guias, e assim desenvolver sentimentos de exclusão, vividos em ressentimentos, rancores, ensimesmados.  O homem não é o dentro nem o fora, é encontro de saída, como disse o poeta João Cabral de Mello Neto.  É entorno, a pele desdobrada, prolongada.


               No mundo criado pela técnica atual, o sujeito vive uma espécie de vida ligeira, leviana para com a vitalidade da Vida (Ortega Y Gasset).  E cria-se assim um espaço-mundo fast, criam-se o fast food, a fast life.  E até uma “ética” da rapidez, com preocupações diferentes daquelas virtudes cardeais da ética clássica, tais como a cordialidade, a temperança, a coragem, a tolerância.
               Não se trata de ser contra a fast food, mas de se querer, junto com a possibilidade do rápido, a possibilidade do lento, para se reencontrar o esquecido.  Trata-se de um olhar que podemos formular a partir de algumas novas expressões artísticas nas quais, ao olharmos para a obra, a obra nos restitui um olhar para o nosso próprio corpo, para dentro, e não somente para conteúdos e formas transmitidos pelo trabalho que admiramos.

               Como poderia se dar esse contato com raízes, com fundamentos com o que é radical, a fazer com que as pessoas pudessem – ao retomarem o amor próprio, o sentimento de si mesmo (Selbstgefühl, Freud, 1914), autoestima, vividos em um tempo e em um espaço da alegria, no movimento da graça corporal – conviver? Onde a natureza fosse reencontrada já com a base, o corpo? Pois somente na alegria da presença, do convívio, é que a memória se apresenta à consciência.  E, por outro lado, qual é esse movimento em direção ao futuro, com base nesse convívio, que não se deixa ser uma “paz de cemitérios”, uma busca mortífera? Como sustentar um conflito interno, sempre presente em uma vida não-alienada, sem nunca afastar o conflito externo, sempre presente no trabalho de ligar a natureza à cultura?

               Devemos retomar o tempo lento, como no movimento em defesa do slow food, da città lenta, nos quais as pessoas vão juntas à feira, escolhem legumes, verduras, retomam receitas antigas e reencontram-se em procuras de lembranças do que não tiveram... A distância deve, em algum momento, conduzir ao mais íntimo, para que seja benéfica.  Por isso não se pode impor um tempo, puxar uma árvore para que cresça rapidamente; mas podemos alimentar diversidades e, sendo assim, possibilidades de escolhas.

               No Rio Grande do Sul colônias italianas enviam pessoas à Itália a fim de que elas tragam receitas que, no Brasil, tinham sido modificadas, talvez pela carência de ingredientes.  Uma bela metáfora, uma bela alegoria para um movimento em direção ao futuro que não dispensa o convívio.  Ir lá e voltar com o resultado da busca é reinventar uma memória... mesmo que de algo nunca existido.  É conviver um cotidiano em um tempo e um espaço reinventados.

               Pode-se, em um país pobre, excluir todos os candidatos a doutorado que se preocupam com o saneamento e incluir apenas os que se preocupam com as ciências humanas, a título, por exemplo, de não terem os primeiros publicado artigos em revistas indexadas? Humilhar uma pessoa, obrigá-la a defecar publicamente por falta de equipamento sanitário, é perversão do sistema.  Onde há humilhação há, pois, perversão. 

               O que é justiça? É preciso justiça.  É preciso “cada vez mais fazer melhores perguntas” sobre o que é ser justo.  E essas perguntas são feitas em um aprimoramento da cultura que não despreza o senso comum, no tocante às necessidades essenciais do ser humano.  É necessária uma academia de novos doutores.  O senso comum, desde o mais profundo de nós, julga todos os sentimentos como momentos que nunca se ajustam, e nunca seriam justos em todos os lugares.  Os sentimentos não existem para serem justificáveis.

               Educar não é preparar para a vida, é a própria vida (Dewey, 1859-1952).  Seria o encontro no convívio, o encontro do externo com o interno, ou seja, o sentimento? A tensão que se transforma em intenção, em projeto de desejo? A “Educação a Distância”, porém, tem sido entregue a um negócio de computadores, a uma passagem de informação, a um espetáculo de tecnologias: - Eu conheço, vou “repassar” para você.

               A educação virtual tem trazido o desemprego.  No Japão, é uma vergonha um banco ter de desempregar gente.  Há uma infinidade de saídas.  Há, em universidades brasileiras, salas de informática fechadas aos professores.

               A proximidade é risco, é contágio.  Tem havido um distanciamento no trabalho com educação a distância que esfria a relação, pois indiferencia os “conteúdos”, não leva em conta necessidades, diferenças humanas, diferenças de regiões e costumes.  Por outro lado, essa distância favorece uma “higiene” no trabalhar, como se o trabalho afetivo, aquele a acompanhar a passagem das técnicas, fosse menos nobre.  Chega-se a dizer: “um saber contaminado pelo afetivo”, como se o trabalho amoroso fosse de menos valor.  Quanto ao trabalho com os projetos, com os sonhos, com os desejos, nem pensar.  Não nos referimos a projetos a serem apresentados a instituições financiadoras.  Esses põem ser pesadelos, com seus prazos, seus formatos, suas bancas que deveriam tudo saber.  Mas relegados, recalcados, os sonhos retornam... com força redobrada.  Nada mais forte do que raízes.  E nada mais real do que o amor, do que Eros, pois é através do amor que nos ligamos ao mundo, que fazemos as coisas “existirem”, seja lá qual for esse amor, pois ele pode ser feito de qualquer matéria de que se disponha à ligação.  E esse mundo é feito de todas as matérias. 

               O sistema binário, o sistema da informática, introduziu o sim ou não como formas de existir.  Para os japoneses, e para a psicanálise, é sim ou não.  É tudo, o necessário no projeto impensado, ou seja, sempre pensado inconscientemente.  Esse projeto precisa do mundo em sua urgência.  A queda das torres é o impensado.  A fome se dirige às vísceras.  O impensado é o recalcado.  Para a psicanálise não há não para o inconsciente.  E o inconsciente rege o sujeito, é sua raiz e seu “eu” mais profundo.  “Quero tudo o que a vida possa me dar”, diz o sujeito continuamente para si, “e urge que seja o mais depressa possível”.   O “sim” é imperativo, inclusive para incluir o “não”.  A ambivalência é constitutiva do humano.  A máquina, porém, quer uma decisão perfeita, quer sim ou não.  A máquina congela, não suporta os dois comandos, não suporta ambiguidades, vacilos, precariedades em suas teclas.  Mas é o precário que funda o sujeito no seio do Outro.  AS engenharias da criação do humano não podem dispensar um empenho no convívio.  E um desempenho, uma autonomia, quando o sujeito faz sua aposta em uma visão singular do mundo. 

               Mas devemos pensar que se há uma fadiga da teoria , ou nos sujeitos que teorizam para compreender as complexidades, esta fadiga também deve ser enfrentada.  Porque não se pode abandonar um aluno, por exemplo, sem uma tentativa de criação de sentido, no convívio de todo ensaio de compreensão de mundo.  Essa tentativa, no entanto, deve vir junto de um olhar a olhar para além do horizonte, a olhar para uma geração por vir, não se sabe quando; e, assim, deverá ser a melhor tentativa possível.

               Como fazê-lo em um programa de distâncias? Ver o distante, o futuro, que em si traz solidão, de longe? Em um mundo em que a máquina, em sua frieza gélida, é o instrumento de comunicação e de construção de um mundo que deve ser, paradoxalmente, mais humano?

               Parece-nos que qualquer encaminhamento, qualquer tentativa de resposta a essa questão tão essencial hoje deve ser um início de um movimento de respeito à diversidade e de elogio às diferenças a povoarem o mundo.


NOTAS E BIBLIOGRAFIA

1 Membros do Grupo de Estudos sobre a Diversidade dos Seres Vivos e das Sociedades e o Comportamento Humano e colaboradores/co-autores do texto:

Alves, Déa Terezinha de Magalhães.  Amin, Teresa Cristina Coury.  Assumpção, Rafaella Fachecci.  Bergstein, Lena.  Brasil, Isidoro Eduardo Americano do.  Bosnic, Emir.  Cardoso, Wilson Bennes de Oliveira.  Carvalho, Sílvia Barbosa.  Corrêa, José de Anchieta.  Cunha, Felipe.  Da Poian, Carmen.  Feltmann, Clementina dos Santos.  Garcia, Célio.  Guedes, José Carlos.  Martorano, Nicola.  Maia, Mariangela Rebelo.  Meye, Mônica de Azevedo.  Monteiro, Maria Isabel.  Moreira, Marcos Fernandes da Silva.  Oliveira, Rosely Magalhães de.  Osanai, Jorge.  Ozório, Lúcia.  Sá, Marilena Castilho.  Salles, Maria José.  Silva, Heberto Lyra Ferreira da.  Silva, Luiz Felipe da Cunha e.  Souza, Edson Luis André de.  Souza, Urian Agria de.  Ribeiro, Cláudio Huguet.  Romão, Francisco.  Tessler, Elida.  Tjara, Elida.  Tjara, Clarice Pacheco.  Tomassini, Hugo Coelho Barbosa.  Tortima, Pedro.  Velloso, Maria Pimenta.  Vianna, Eliana Chaves.

ARGAN, Giulio Carlo. 1999. Clássico anticlássico; o renascimento de Bruneleschi a Bruegel. Ao Paulo: Companhia das Letras.  
ARGAN, Giulio Carlo. 1992. História da arte como história da cidade. SP: Martins Fontes.   
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SANTOS, Boaventura de Sousa. 2001. Conferência no Fórum Social Mundial. Porto Alegre.

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